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Um filme sobre o lado escuro da arte

Pinturas negras de Iberê Camargo e labirinto branco de Álvaro Siza inspiram Coulibeuf a discutir o duplo que nos persegue

Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Conhecido como um cineasta que construiu sua obra a partir de outras disciplinas artísticas e criadores como o belga Jan Fabre e a iugoslava Marina Abramovic, o francês Pierre Coulibeuf está em Porto Alegre para o lançamento do primeiro filme internacional dedicado à pintura do gaúcho Iberê Camargo (1914-1994), Dédale (Dédalo). O filme, quase um média-metragem (tem 26 minutos e 40 segundos de duração), é parte de uma exposição aberta hoje com uma série de 12 fotografias - outakes retirados de Dédale-, três projeções em vídeo e sobras de corte da montagem, procedimento comum no trabalho de Coulibeuf. O cineasta falou, por telefone, com a reportagem do Estado, explicando a razão de ter recorrido à mitológica figura de Dédalo para dar sua interpretação da pintura de Camargo. Dédalo, como se sabe, foi o arquiteto que, na mitologia grega, construiu um labirinto para o rei Minos aprisionar o minotauro, seu monstruoso filho. Já o português Álvaro Siza seria o correspondente contemporâneo de Dédalo, ao conceber o prédio branco e labiríntico onde funciona a Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre. Nele foi instalada uma falsa exposição de telas verdadeiras do pintor para que a performer portuguesa Vania Rovisco encarasse o "dark side" das abstratas "pinturas negras" do expressionista Iberê, realizadas nos anos 1960. Um pouco pelo desafio pictórico, um pouco pelo arquitetônico cul-de-sac de Siza, ela tenta fugir pelos estreitos corredores do prédio projetado pelo português. Os personagens de Vania Rovisco e do ator brasileiro Matheus Walter são os equivalentes de duas figuras mitológicas ligadas ao labirinto de Dédalo, Ariadne e Teseu, que se encontram e se perdem no interior do prédio de Siza e terminam numa praia, refazendo a trajetória da dupla - Ariadne, que guiou Teseu no labirinto para matar o minotauro, foi abandonada por ele na ilha de Naxos. A história responde pela estrutura formal do filme de Coulibeuf, que assume a metáfora como meio de expressão. "O movimento circular está presente tanto nos corredores do prédio como na obra de Camargo, repleta de ciclistas, e me ocorreu a ideia do labirinto como uma conexão natural entre pintura, arquitetura e cinema, conservando a autonomia dessas disciplinas", explica Coulibeuf. Ele diz ter escolhido as "pinturas negras" de Iberê não só por seu apelo dramático, mas pelo lado escuro do doppelgänger que se esconde dentro de cada um de nós, sempre disposto a se manifestar como um monstruoso minotauro. Ariadne não encontra nenhum Dionísio disposto a resgatá-la no filme de Coulibeuf, mas parece condenada a ser assombrada pelas telas de Iberê. Tampouco o cineasta escapa do sentido trágico dessa pintura, feita de matéria densa e experiência vital pesada. Antes, reforça essa gravidade existencial desde a primeira imagem captada pela câmera de Lula Carvalho, uma aranha presa à própria teia, como Ariadne. Curador da exposição, o historiador de arte Gaudêncio Fidelis explica que sua meta - introduzir a pintura de Iberê num contexto contemporâneo e internacional - só poderia ser cumprida por um artista como Pierre Coulibeuf, que não é documentarista, mas um criador que reinterpreta a obra de outros artistas desconstruindo seus trabalhos. Numa abordagem transversal, ele já se apropriou de uma performance de Marina Abramovic, Biografia (leia texto nesta página), para realizar há dez anos seu filme Balkan Baroque. Nele, o diretor usa a evocação voluntária do passado pela performer iugoslava para investigar seu universo mental, apostando na descontinuidade da memória. O novo filme do cineasta, Dédale, faz parte do Ano da França no Brasil e foi encomendado pela Fundação Iberê Camargo, que conta com o apoio da Gerdau, do Itaú, Camargo Corrêa, Vonpar e De Lage Landen.

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