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Um estranho no ninho em Paraty

Ao confundir realidade com ficção, o mexicano Mario Bellatin promete ser uma boa surpresa da Flip

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Por Ubiratan Brasil
Atualização:

Se fosse um filme, o escritor mexicano Mario Bellatin talvez seria Verdades e Mentiras, o falso documentário de Orson Welles. Afinal, para o cineasta, o falso, na arte, pode ser genuíno pelo simples fato de que a própria arte é uma falsificação da realidade. Esse é o credo de Bellatin, autor que deverá surpreender na Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, entre os dias 1º e 5 de julho. Primeiro, pela persona que criou para si - filho de pais peruanos, 49 anos e mais de 15 livros editados, Bellatin gosta de parecer um ilusionista, confundindo realidade e ficção, desde questionar a própria origem (já afirmou, por exemplo, que nasceu no Peru) até criar situações em que a verdade se torna duvidosa (leia texto ao lado). E, segundo, por sua literatura seca, breve, pulverizada em pequenas narrativas como as que formam Flores (tradução Josely Vianna Baptista, 80 páginas, R$ 39), lançado agora pela Cosac Naify e já incensado por parceiros como Marcelino Freire e Joca Reiners Terron. São textos fragmentados em que os personagens são vítimas de deformações congênitas - aqui, uma aproximação com a realidade, pois Bellatin nasceu sem o antebraço direito. Sem limitar, a deformidade, na verdade, incentiva-o a colocar próteses artísticas, como um gancho ou uma flor metálica na extremidade. E, ao lado do artista plástico Aldo Chaparro, planeja peças "mais funcionais", ou seja, com um celular ou um iPod acoplado. Sobre o trabalho, gosta de confundir e não de explicar. Já alardeou, por exemplo, que vai escrever a biografia da Frida Kahlo - não a pintora, mas uma cozinheira que vive na Cidade do México, parecida com a artista. Fã de Chico Buarque, Bellatin rascunhou um conto que vai integrar uma coletânea organizada por Ronaldo Bressane, baseada nas canções do músico. É sobre isso que começa a entrevista, por e-mail, concedida ao Estado. Fale sobre a admiração por Chico Buarque. Apesar da barreira cultural que tradicionalmente separa o Brasil do restante da América latina, a música e o cinema conseguiram ultrapassar esse muro e se converteram em parte de nossa educação. Chico Buarque, em ambas manifestações, foi uma figura fundamental, compondo um tipo de canção que até agora, acredito, ninguém conseguirá equiparar. E o conto Los Fantasmas del Massagista? É meu texto que faz parte do projeto sobre as canções de Chico Buarque. Corri para escolher Construção, peça mítica, e resultou algo que não tem pé nem cabeça (conta a história de uma cantora que trava depois de incluir ?Construção? em seu repertório). Foi difícil trabalhar a partir de uma criação tão perfeita. As palavras fazem mover as coisas? São perigosas as palavras? Terríveis. Sobretudo para o autor. Existe uma profecia, que me atingiu mais de uma vez, em que o escritor termina vivendo cenas de seus romances 15 ou 20 anos depois. Especialmente as mais terríveis que, na verdade, são as mais prazerosas, mas não percebemos. O que é ser escritor? Isso define algum tipo de identidade, ou é apenas um ofício? É ser um monge. Alguém que é definido mais por sua atitude perante a escrita - que está acima de tudo - do que por seus próprios textos. A solidão é, de fato, fundamental para o escritor? Não há receita para esse monge. Os hábitos podem surgir independentemente do espaço: acompanhado, sozinho, vivendo em uma cela ou em meio a festas constantes. O importante é a escrita ser a pedra angular. Você acredita que todos temos palavras que não podem ser ditas? Nem ditas, nem pensadas, nem escritas, nem escutadas. Estamos plenos de silêncios carregados do não-dito. A obra de Gabriel García Márquez é criticada por alguns escritores latino-americanos, que o consideram um estrangulador de talentos por impor um único estilo à literatura latino-americana. O que pensa disso? Prefiro não pensar em autores, mas em livros. E Cem Anos de Solidão, Ninguém Escreve ao Coronel e outras obras são imprescindíveis na história literária. Todos os demais comentários sobre García Márquez são tão insustentáveis que já estão esquecidos, ou estão por cair. Sua obra é comparada, por exemplo, com a de Enrique Vila-Matas, especialmente por viverem da tensão entre o real e o ficcional. O que pensa disso? Creio que obras, em geral, não devem ser comparadas, salvo a intenção expressa do autor em complementar seu trabalho com a de outro criador. Acredito que a tensão a que você se refere está presente na maioria dos trabalhos de ficção. Aliás, sua obra também já foi comparada aos filmes de David Lynch pelo estranhamento provocado no leitor. Novamente: o que pensa dessa comparação? De fato, já foi dito isso. Nunca pensei em David Lynch quando escrevi meus livros. Trato de não pensar em nada, enquanto a escrita começa a fluir. Aquele que pensa perde: eis uma premissa da escola de escritores que dirijo. Mas acredito, ao mesmo tempo, por força de ser publicado e tendo sido convertida em uma ação pública, que todos têm o direito de fazer o que consideram adequado com os livros que têm diante de si. A escritora Maria Alzira Brum Lemos disse, em uma entrevista, que, se pudesse escolher ser um personagem da literatura, preferiria ser "um mutante de Bellatin". Como surgem esses mutantes: a partir da imaginação ou importa mais a observação da realidade? Nenhuma criação acontece de forma pura. Sou o menos indicado para entender os intrincados mecanismos que permitem criar determinados personagens. Não vêm da imaginação, não são produtos da observação, nem são construções intelectuais. O que são, então? O leitor que decida. Verdades e mentiras Mario Bellatin aproveitou um congresso de escritores mexicanos em Paris para aprontar. Diante de acadêmicos europeus ávidos por conhecer os novos nomes da narrativa de seu país, Bellatin surpreendeu ao apresentar Sergio Pitol como uma senhora de vestido, além de apresentar um jovem como sendo José Agustín Ramírez Gómez, apesar de seus 64 anos. A farsa logo foi descoberta: em vez de escritores autênticos, Bellatin apresentara pessoas que conviveram durante seis meses com os autores originais, decorando seus projetos literários e suas opiniões. Convidado pelo jornal argentino La Nación para resenhar o livro Kioto, do japonês Yasunari Kawabata, Bellatin preferiu a anarquia: copiou trechos de críticas publicadas sobre seus próprios livros. Para disfarçar, substituiu seu nome pelo do autor japonês e os de seus livros por Kioto. Publicado, o artigo foi saudado e aclamado como "brilhante", até que o próprio Bellatin revelou a verdade. O caso foi narrado no Moleskine Literário, blog do escritor peruano Iván Thays: segundo ele, na cláusula 16 do contrato com a editora mexicana Almadia, para publicação de La Jornada de la Mona, o escritor mexicano estipulou: "Parte do pagamento ao autor se dará na entrega de um cachorro da raça xoloixcuintle (ameaçada de extinção), puro, pertencente à estirpe de cachorros do pintor Francisco Toledo." Já o desespero tomou conta de uma diretora de teatro, que encenou um texto de Samuel Beckett incentivada por ele. Era, na verdade, do próprio Bellatin.

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