Um estado de espírito parisiense

É como Jean-Michel Frodon, da Cahiers du Cinéma, define a nouvelle vague

PUBLICIDADE

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

O crítico Jean-Michel Frodon é diretor de redação da Cahiers du Cinéma, a revista de cinema mais influente do mundo. Os Cahiers tiveram enorme impacto sobre várias gerações de cinéfilos e serviram como plataforma de lançamento da nouvelle vague, movimento que está completando 50 anos de existência em 2009. Cronologias desse tipo são sempre complicadas porque movimentos estéticos, em geral, não começam do dia para a noite, com a assinatura de um manifesto ou um ato de fundação. No mais das vezes iniciam com vagos antecedentes, até que certas tendências começam a ficar mais claras, se definem e se cristalizam num determinado momento. Ou melhor: numa determinada obra. Foi o que aconteceu com o cinema novo brasileiro, que começou a nascer com os dois filmes neorrealistas de Nelson Pereira dos Santos - Rio 40 Graus (1955) e Rio Zona Norte (1957) - até se tornar nítido com as grandes obras posteriores de Glauber Rocha, do próprio Nelson, de Ruy Guerra, de Cacá Diegues e outros. O mesmo aconteceu com a nouvelle vague. Frodon cita como pertencente ao movimento La Pointe Courte, filme de Agnés Varda de 1954. No entanto, a nouvelle vague só tomaria forma definitiva com o primeiro longa-metragem de Claude Chabrol, Le Beau Serge (no Brasil, Nas Garras do Vício), rodado em 1958 e estreado em janeiro de 1959. E, principalmente com a apresentação de duas obras-primas no Festival de Cannes de 1959 - Os Incompreendidos e Hiroshima, Meu Amor, primeiros longas de François Truffaut e Alain Resnais. Ambos estão entre os favoritos de Frodon, como se lê na entrevista abaixo. Na sua opinião, o que resta da nouvelle vague hoje no presente? A nouvelle vague é um acontecimento na história da arte, que marca tudo o que a ela se seguiu, incluindo a reação contra ela - como o impressionismo marca a história da pintura ou Joyce marca a história da literatura. O cinema mudou radicalmente com ela, mesmo se ela própria se inscreva em um movimento mais amplo. A nouvelle vague permanece um "princípio ativo" hoje em dia, naquilo em que ela valorizou a ideia da juventude na direção de cinema, de liberdade e ruptura. Podemos dizer que Lisandro Alonso, Apichatpong Weerasethakul ou Jia Zhang-Ke (por exemplo) devem alguma coisa à nouvelle vague, não porque seus filmes se assemelhem aos de Truffaut, Godard, Chabrol ou Rohmer (que aliás não se parecem nem entre si mesmos) mas porque eles ganharam, graças à nouvelle vague, mais legitimidade para inventar seus próprios cinemas. Na França ela se tornou apenas referência histórica ou tem herdeiros, como Garrel, Honoré e outros? Para muitos jovens realizadores, a nouvelle vague permanece uma "reserva energética". A maneira menos interessante de recorrer a ela seria fazer filmes imitando a nouvelle vague do início dos anos 60. Quais são os seus filmes preferidos do período da nouvelle vague? La Pointe Courte, Os Incompreendidos, Hiroshima Meu Amor, Acossado, La Jetée, Les Bonnes Femmes, Le Signe du Lion, Paris Nous Appartient, Adieu Philippine, Jules e Jim, O Pequeno Soldado, Lola, Le Combat Dans l?Ile, Cléo de 5 à 7, Le Bonheur, Os Carabineiros, Uma Mulher É Uma Mulher, Atire no Pianista, Um Só Pecado, La Collectionneuse, Duas Garotas Românticas, Muriel, Minha Noite com Maud, Le Joli Mai, L?Amour Existe, Viver a Vida, O Desprezo, Bande à Part, Pierrot le fou (O Demônio das Onze Horas), A Religiosa, todos os outros filmes de Jacques Rozier (que permaneceu cineasta da nouvelle vague), Nicht Versöhnt (Não Reconciliados), Les Idoles, L?Amour c?est Gai, l?Amour c?est Triste, Paris Visto por... Poderia citar muitos outros filmes, mas certamente não menos. Segundo você, a nouvelle vague seria verdadeira escola (como o neorrealismo italiano) ou apenas um movimento, um grupo de amigos que amavam o cinema e resolveram fazer filmes juntos? Nem uma coisa nem outra. Ela foi um "espírito", que resultou em filmes muito diferentes (o que não foi o caso do neorrealismo italiano) com posições estéticas muito pessoais. E é exatamente por isso que ela continua presente, de maneira subliminar - e sobretudo não pelas citações - em inumeráveis filmes posteriores. Em sua opinião existe alguma relação entre a nouvelle vague francesa e o cinema novo brasileiro? Com certeza, em contexto bem diferente, o cinema novo é também uma explosão do desejo pessoal de cinema em sintonia com o mundo real, que deve uma parte de suas fontes ao neorrealismo e outra parte àquilo que a sua cultura (parisiense para a nouvelle vague e carioca para o cinema novo) tem de particular. O cinema novo foi capaz de ampliar sua relação ao território nacional, em particular se aclimatando ao Nordeste, o que muito o engrandece. Conceituação HERDEIROS: Frodon trabalha com um conceito "ampliado" de nouvelle vague. Por considerá-la antes como "estado de espírito" do que como escola, estética ou poética, pode associá-la a autores fora do núcleo duro da nouvelle vague, formado em geral por Chabrol, Rohmer, Godard, Truffaut e Rivette. Inclui a precursora Agnês Varda (La Pointe Courte) e os "independentes" Alain Resnais (Hiroshima), Chris Marker (La Jetée) e Jacques Demy (Duas Garotas Românticas). Além disso, estende sua influência libertária sobre contemporâneos como o chinês Jia Zhang-Ke, o malaio Apichatpong Weerasethakul e o argentino Lisandro Alonso.L.Z.O.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.