Um enigma fascinante solto pelas ruas

Textos do dramaturgo alemão Heiner Müller inspiram encenação da Cia. São Jorge pelo bairro da Barra Funda

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Por Crítica Mariangela Alves de Lima
Atualização:

O prólogo do espetáculo apresentado agora pela Cia. São Jorge de Variedades é exibido durante um passeio vespertino pela Barra Funda. É bem-humorada, mas polidamente respeitosa, a recepção feita por transeuntes desse animado bairro central. Na verdade, se excluirmos a espontaneidade de participações por indução química, a acolhida dos paulistanos para o espetáculo de rua é, em geral, filtrada pela devoção mítica que o teatro desperta nos que não o conhecem bem. Enquanto no Nordeste do País as manifestações cênicas a céu aberto são "brincadeira", no duplo sentido de jogo e festa coletiva, a ideia de teatro vigente entre nós distingue as áreas da representação e do público, separa o ator da assistência e, preserva, por vezes contrariando o desejo dos artistas, uma distância cerimoniosa entre os atuantes e a assistência. Um dos motivos para que os espetáculos de rua sejam tão raros, é esse círculo vicioso que impede a familiaridade exatamente porque o teatro não é um hábito da população. Talvez, se os artistas que ambicionam ocupar as praças respeitassem o jeito esquivo dos tímidos metropolitanos e desistissem de tentar seduzi-los por meio de hipérboles da cultura popular, fosse possível uma relação mais produtiva. Essa é, parece-nos, a hipótese explorada em Quem Não Sabe Mais Quem É, o Que É e Onde Está Precisa se Mexer, espetáculo baseado em textos do dramaturgo alemão Heiner Müller. O grupo, que já experimentou modos diferentes de se apresentar fora dos teatros, começa este trabalho com um breve giro pelo bairro onde fixou residência, mas não faz aos vizinhos o convite sedutor habitual. As figuras que desfilam na rua não são familiares para quem se habituou aos clichês da cultura de massa e tampouco análogas à tipologia profissional do bairro. Não pretendem aliciar com a isca do humor. Merecem o espanto e a estranheza com que são recebidas, mas são também dignas do respeito dos circunstantes porque se apresentam como enigmas. Um espectador, por exemplo, colabora como cenotécnico quando solicitado, observa a cena durante parte do trajeto e conclui: "Não estou entendendo nada. Não sei quem é essa gente." Ninguém se dá ao trabalho de explicar ou se esforça para agregar ao grupo de espectadores este participante eventual. E é esta aceitação por parte dos artistas de uma distância que não pode ou não deve ser percorrida sob pena de comprometer o caráter provocador do teatro que contribui, paradoxalmente, para tornar mais horizontal e democrática a comunicação na rua. Aquilo que se explica foi de certa maneira domado e aquele que explica se situa num patamar superior de conhecimento. Destas duas armadilhas escapam habilmente os três atores do grupo. E é também desse modo concreto, traduzido pela ação, que se repete o corolário filosófico do dramaturgo Heiner Müller: "Não represento mais nenhum papel. Minhas palavras já não me dizem mais nada. Meus pensamentos sugam o sangue das imagens. Meu drama não se realiza mais. Atrás de mim monta-se a cena. (...) A esperança não se concretizou." Muita gente aceitou e continua aceitando o derrotismo implícito nessa negação. Mas há também os que reconhecem nas entrelinhas, nas rubricas, nas formulações teóricas e na prática cênica do dramaturgo da extinta República Democrática Alemã a proposta de um teatro misterioso, desafiador, que tanto pode apoiar-se no texto quanto escapar dele ou ironizá-lo como instrumento por excelência do fracasso da racionalidade. O espetáculo dirigido por Georgette Fadel é, antes de tudo, alegre celebração da potência da desrazão. A cena que se monta "atrás" do protagonista clássico é uma ciranda veloz de combinações imaginosas de personagens que se armam num piscar de olhos, fazem uma ligeira circunvolução em cena e dão lugar a outras igualmente insólitas. O risível e o atraente se sucedem, desmancham-se, entram em acordo ou desacordo e, enfim, proporcionam um desfile de figuras cuja fonte de inspiração é, na maior parte dos casos, um mistério que a encenação não pretende solucionar. Há dez anos, a Cia. São Jorge de Variações peregrina por espaços de criação diferentes e trabalha sobre um repertório dramático eclético. Neste trabalho, concebido e realizado "em casa", em uma sede onde pode interferir livremente no espaço, o elevado patamar técnico do grupo torna-se mais evidente. Três intérpretes (Mariana Senne, Patrícia Gifford e Marcelo Reis) fazem prodígios de articulação entre desempenhar cenas, variar personagens, construir, desmontar e reconstruir ambientações e, não menos importante, pontuar essas variações com execuções musicais. Mexem-se, transformam-se e a mobilidade, neste caso, parece a um só tempo proposta estética e réplica ideológica lançada aos que pensam saber como as coisas devem ser. Parece porque, ao contrário de Hamlet, quem está no teatro precisa confiar na aparência. Serviço Quem Não Sabe Mais Quem É, O Que É e Onde Está, Precisa se Mexer. 75 min. 16 anos. Casa de São Jorge (25 lug.). R. Lopes de Oliveira, 342, Barra Funda, 3824-9339. 4.ª a 6.ª, 12 h; sáb., 15 h. R$ 20. Até 25/4

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