Um Calígula como manda o figurino

Análise da montagem de Gabriel Villela, em cartaz no Sesc Pinheiros, a partir das roupas que ele vestiu nos seus personagens

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Por Fausto Viana e Rosane Muniz
Atualização:

Para revelar que "tudo ao nosso redor é um embuste", Gabriel Villela, diretor e figurinista de Calígula, opta pela linguagem direta e "limpa" de um Brecht e coloca o elenco romano com figurinos contemporâneos, representando tudo o que de mais terreno, material e palpável existe para mostrar a estupidez humana, a infelicidade e a morte como solução. Tudo se apresenta de forma clara e óbvia. Há uma proposital falta de sutileza nas metáforas visuais apresentadas. Aparente contemporaneidade e limpeza visual. Em entrevista, Villela comenta que o protagonista do espetáculo só poderia ser Thiago Lacerda porque "no Brasil não há outro ator com físico e juventude para fazer um minotauro em cena". Ser híbrido, misto de homem e touro, resultado da paixão provocada por um deus grego e uma mulher, que copulou com um touro branco que deveria ter sido sacrificado. O minotauro, em uma leitura um pouco direta demais, é a imposição da animalidade sobre o humano. E, assim, começamos a entender o figurino de Villela. O próprio Brecht escolhia para seus espetáculos materiais "vivos", de origem natural. E o couro é o que de mais animal se pode encontrar em termos de "tecido" maleável. É o que de mais primitivo o ser humano já vestiu, fruto da sua necessidade de proteção e da disponibilidade do material, obtido a partir de suas caças, quando o curtume ainda não existia. Este couro, que devia cheirar muito mal, era um misto de carne estragada com suor, e servia para proteger o homem das intempéries. Mas há um contraponto muito curioso: o espetáculo traz outro elemento, que é muito "terreno". É a pintura corporal, que surge muitas vezes de maneira lúdica, pelas mãos dos próprios atores em cena, mas que no manuseio de Villela, criador da direção simultaneamente ao visual, não entra impunemente. Em primeiro lugar, quem conhece o trabalho do diretor mineiro pensará: onde está a brasilidade do figurino de Romeu e Julieta? Ou de A Rua da Amargura, só para pensar nos trabalhos com o Grupo Galpão? Pois a característica brasileira está, curiosamente, nos grafismos. Proposta que remete ao grupo Timbalada que - também com poucos recursos iniciais - se apresenta com pinturas corporais, facilmente identificáveis com as dos guerreiros africanos. Nada reuniria melhor esses elementos do que o espetáculo teatral, um acontecimento ritual por excelência. Não se deve esquecer que o teatro ocidental tem sua origem nos sacrifícios em honra a Dionísio, em que o que se oferecia era nada menos do que um bode, que seria degolado no altar principal. A própria máscara teatral tem sua origem, segundo indicam alguns especialistas, na pintura facial feita com a borra do vinho sedimentada no fundo dos jarros de vinho. No caso de Villela, trata-se apenas de juntar esses dados todos e o que se verá é um figurino criado para representar a auto-imolação de Calígula em cena. O próprio autor escreve que "Calígula é a história de um suicídio superior. É uma história sobre a forma mais humana e mais trágica de errar". Elementos ainda mais contemporâneos e carregados de símbolos são colocados em cena para execrar os tiranos do século 21, assim como Camus o fez com os tiranos do século anterior. A bolsa Nike do intendente do Tesouro poderia ser um detalhe, mas torna-se parte da narrativa pelo modo como é inserida em cena. É nela - que toma várias vezes a boca de cena - que está o tesouro público. Quase didaticamente, o chefe das "verdinhas" usa o rosto pintado de verde e fala com sotaque inglês no epílogo do espetáculo. Mas o que está verdadeiramente por trás talvez seja o slogan da marca: "Just do it." Que, lido de forma inocente, pode realmente significar superação pessoal, desafio atlético (que está lá representado na figura de Thiago Lacerda, ele próprio ex-atleta). Mas, lido dentro do sistema, significa: faça o que bem entender; aja como quiser, independentemente do resto. Justamente a opção de Calígula quando decide exercer, até o impossível, a liberdade. O que não está claramente implícito é que depois de um "just do it", há um "pay for it". É quando ele descobre que tamanha liberdade não é tão boa assim. Villela veste a "sociedade" com véus, sedas, peles... A mulher do touro branco, simbolizada na pintura do corpo feminino em transparente voil, que serve de mesa a Calígula, no incrível banquete - pretexto para roubar as mulheres dos patrícios - depois de "violentada" em cena, é levada aos aposentos para retornar estilhaçada e ensangüentada na representação clara do véu rasgado e sujo de sangue. "Para ser um imperador, basta um toque de mágica!" E eis que surge Calígula com uma blusa negra - delicada e feita à mão pelo próprio diretor/figurinista. O público não vê, mas a textura da blusa é criada a partir de moedas embrulhadas em um crepe leve. Seria uma atitude stanislavskiana por parte do diretor, oferecendo suporte físico, ambientação e objetos externos para a interpretação do protagonista? As moedas simbolizariam o poder incrustado no corpo da personagem, os meandros das lavagens de dinheiro... E o formato final do traje negro tem o aspecto de uma armadura que, com retalhos presos, aparentemente vai se despedaçando ao molhar-se pelo suor do corpo do ator. A figura criada em Lacerda é assustadoramente "hamletiana", o que nos leva a pensar nas semelhanças e infortúnios das duas personagens. No entanto, o que diferencia os dois é a sexualidade evidente que Calígula trabalha, exaltada no lenço vermelho do pescoço. Símbolo masculino de virilidade como um presságio de derramamento de sangue, igualmente representado nas partes interiores do vestido final de Cesônia - preto e forrado em vermelho. Cesônia, qual um minotauro feminino, se tal figura existisse, é imolada após ter aparecido em cena com um bolero de toureiro. O figurino, que Villela assina com Maria do Carmo Soares, atriz que já trabalhou ao seu lado em outras ocasiões, traz também Cipião e sua ambigüidade na paixão pelo Imperador representados no gosto pelos modismos e estampas florais na lateral de sua camisa de marca. Há também, durante o espetáculo, referências da formação multidisciplinar de Villela e um generoso oferecimento de símbolos para o público: logo de início, há uma projeção de Thiago/Calígula que parece remeter a um raio X, mas que, ao mesmo tempo, traz em si algo dos desenhos de Egon Schiele, este um relator fiel da degradação humana. No programa da peça, algumas personagens trazem na cabeça um curioso adereço, que não passa despercebido: fios de metal que parecem realmente mostrar o fechamento de uma cirurgia no crânio, ou uma lobotomia. Há também uma referência ao clássico Frankenstein, homem resultado de muitas partes costuradas, cujo trágico destino todos conhecemos. Os deuses estão literalmente de pantufas para assistir à megalomania de Calígula no metateatro que, forçosamente, transforma os patrícios em "palhacinhos". O vermelho chega como uma brincadeira inocente, nas pontas dos narizes, mas logo será parte do peito de muitos, enquanto se iniciam as conspirações. "Quando o homem pode ser Deus, basta endurecer o coração." Calígula endurece seu coração, porém não consegue evitar a morte provocada, que viria no "epílogo de um imperador artista", como ele mesmo anuncia. Na cena final da condenação, Calígula é despido de sua camisa preta "em trapos", todos os valores finalmente perdidos, e resta o vazio, em uma camiseta básica branca. Magali Biff entra com um aplicador - como se inserida em um reclame televisivo - e espirra sangue no rosto, corpo e vestes de Thiago Lacerda, para, em seguida, retornar à hora da verdade: "Mostrar a paixão pelo impossível em toda a sua fúria, justificando estragos e desencadeando confrontos", como prescrevia Camus. Curiosamente, ainda há pessoas que vêem o espetáculo esperando pela nudez (o figurino de cores mais fortes) do protagonista, uma espécie de fetiche doentio disfarçado de interesse artístico pelo corpo do ator. Em 1958, Camus escreveu: "Alguns acham que minha peça é provocante e são os mesmos que, no entanto, (...) aceitam fazer ?ménage à trois?, desde que nos limites, é claro, de quatro sólidas paredes e em alta sociedade." De fato, 50 anos é muito pouco tempo para esperar mudanças de atitude. A nudez está ali o tempo todo, só não no formato que algumas pessoas esperam. Serviço Calígula. 100 min. 14 anos. Teatro Paulo Autran - Sesc Pinheiros (700 lug.). R. Paes Leme, 195, Pinheiros, 3095-9400. 6.ª e sáb., 21 h; dom., 18 h. R$ 5 a R$ 20. Até 22/2

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