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Última jam session de Duke Ellington

Registro inédito faz parte do DVD duplo que chega às lojas e inclui ainda show de 1966, com participação de Ella Fitzgerald

Por João Marcos Coelho
Atualização:

Duke Ellington e Joan Miró passeiam descontraídos pelo maravilhoso museu ao ar livre repleto de esculturas modernas da Fundação Maeght, em Saint Paul de Vence, na Côte d''Azur francesa. De repente, topam com um piano Steinway modelo de concerto branco que se integra suavemente à paisagem. Então, faz-se a mágica. Miró, vidrado confesso por jazz, encosta-se em uma de suas esculturas e sorve Ellington, que improvisa um pouco ao lado de contrabaixo e bateria. Corte e já estamos no Festival de Jazz de Juan-les-Pins, e o mesmo tema come solto no show de Elllington e sua big band. Essas talvez sejam as imagens mais impactantes do DVD duplo que a ST2 está distribuindo no mercado brasileiro quase simultaneamente ao lançamento internacional. São duas situações distintas. No primeiro, um filme em P&B registra cenas de Ellington no museu e no show de Juan-les-Pins, com direito a participação especialíssima nos três números finais de Ella Fitzgerald; no segundo, imagens até inéditas da última jam session do Duke, em 8 de janeiro de 1973, com o guitarrista Joe Pass, o contrabaixista Ray Brown e o baterista Louie Bellson. São situações informais, com intromissões do produtor Norman Granz, que renderam um disco lançado pela Pablo nos anos 70, The Duke Big Four. Não foram poucos os que afirmaram que ele tratava seus músicos como as teclas de seu piano. De fato, seus arranjos têm uma fonte clara no modo de seu toque pianístico. Outros insistiram que ele compunha visando sempre a este ou aquele solista. Terceiros ainda conjecturam que os músicos são como as cores na sua paleta de pintor de sons (ele conseguia horas vagas para pintar). Todas as afirmações são verdadeiras, até certo ponto. Mas o Duke, na verdade, tinha um som ideal na cabeça que perseguiu durante quase meio século, com sua orquestra, dos anos 20 aos 70. Um som que já nasceu pronto, com o estilo jungle testado e aperfeiçoado nos sete anos de atuação quase diária no lendário Cotton Club nova-iorquino da década de 20 imortalizado por Coppola em 1984. Seu primeiro trompetista, Bubber Miley, usava um autêntico desentupidor de pia de banheiro como surdina para fazer grunhidos e emitir sons quase humanos em seu instrumento, numa evocação das origens africanas dos negros norte-americanos. Mas, longe de ser primitivo, a selva do Duke não existe no mapa. É um conceito criativo abstrato, como a arte e a literatura moderna do início do século passado - aquela do chamado ''fluxo de consciência'' típico de nomes como James Joyce, combinado com a linguagem cortante de escritores como Ernst Hemingway. Nas artes visuais, os nomes afins atendem por Picasso, Matisse, Brancusi, Calder, Giacometti. Bem, o jungle style não foi só um ponto de partida, mas de chegada, e foi lapidado ao longo das décadas. Tanto que no show de 1966 ele está mais presente do que nunca: nos solos, brilhantíssimos, dos trompetistas Cootie Williams (notável pelos agudos) e Cat Anderson (na surdina) e Lawrence Brown (trombone) em clássicos ellingtonianos dos anos 20, como Black and Tan Fantasy e The Mooche. Sem contar o talento do sax-alto Johnny Hodges, um dos gênios da banda de Ellington. Assim, o jazz moderno não teria nascido com o bebop de Charlie Parker e Thelonious Monk, mas bem antes, no fim dos anos 20, com Ellington. Essas idéias são de Alfred Appel Jr.: ''Black and Tan Fantasy é a primeira obra-prima do modernismo negro'', escreve ele no livro Jazz Modernism, de 2003, que a Cosac Naify deve lançar. O primeiro DVD completa-se com três intervenções de Ella Fitzgerald. Com timbre cristalino e enorme tessitura vocal, Ella soube da morte da irmã horas antes do show de 1966. Ainda assim esbanja alegria em Something To Live For, canção de Billy Strayhorn, parceiro compositor e arranjador mais íntimo de Ellington, que morreria no ano seguinte; no clássico Things Aint What They Used To Be e em Só Danço Samba, ou Jazz Samba, com direito a um scat de arrepiar. Sete anos depois, o Duke entrou em estúdio com Pass, Brown e Bellson para gravar The Duke Big Four. O filme, agora disponível em DVD, mostra-o com inteira descontração e domínio pleno do instrumento. Há excesso de informalidade que às vezes atrapalha, e a captação de imagens é desleixada. Mas vale como documento de uma das raras sessões de Ellington em petit comitê. Um mês antes, em dezembro de 1972, Duke e o contrabaixista Ray Brown (ex-marido de Ella e pilar do trio de Oscar Peterson) gravaram para o selo Pablo um dos mais belos discos da história do jazz: This One''s for Blanton. O tributo ao contrabaixista Jimmy Blanton (1918-1942) recria o que muitos, ao contrário de Appel, consideram o período mais genial da orquestra, entre 1940 e 1942, interrompido com a morte súbita de Blanton. Nos últimos anos de vida de Ellington, Granz aplicou-se em registrar sua arte pianística em pequenos grupos - de duos e trios a quartetos e quintetos -, até então negligenciada em gravações. Ouvir o piano de Ellington equivale a testemunhar a gênese de arranjos memoráveis para a big band. Seu vocabulário harmônico nasce no piano e é transposto para a orquestra quase literalmente. Ele adorava transgredir as boas regras em harmonia, diz o pianista clássico Don Shirley, que acrescenta: ora, ''ele simplesmente não as conhecia''. De fato, como diz seu filho Mercer, ''meu pai fazia, por exemplo, o sax-barítono tocar notas mais altas que os tenores - isso viola a convenção, mas é isso que torna o seu som único''. E, finalmente, dezenas dos arranjos hoje antológicos nasceram nos ensaios da banda com Duke ao piano tocando para cada músico sua parte, sem nada escrito. Por isso, talvez Alfred Appel tenha razão, como bem atestam esses dois DVDs essenciais: em pleno 1966, Cootie Williams e Cat Anderson tocam, basicamente, do mesmo jeito que Bubber 40 anos antes. Mas atenção: não se trata de clonagem, e sim de lapidação do estilo jungle - vivíssimo, do começo ao final de sua gloriosa carreira. Não consigo resistir. Repito François Billard aplicando ao Duke uma frase de Jean Cocteau: ''São necessários muitos anos para nos tornarmos jovens.''

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