Trivial afasta montagem da perfeição

Falta a sedimentação das atuações, mas há uma idéia firme como suporte

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Por Crítica Mariangela Alves de Lima
Atualização:

Se não tivesse outros méritos, a encenação de Hamlet dirigida por Aderbal Freire-Filho valeria por ter posto à prova um ator muito bom que, depois dessa experiência, ficará ainda melhor porque, mais difícil, só o Rei Lear.Ágil, privilegiando a emotividade dos discursos e dos atos do protagonista, Wagner Moura molda toda a interpretação sobre alguns traços de composição do personagem. Seu príncipe é menos o intelectual melancólico, que transubstancia o particular em universal, e mais o jovem ferido e irado cuja dor pessoal impregna o cenário ao seu redor. Ao longo de uma trajetória ficcional, em que as revelações confirmam os pressentimentos e as ações se impõem por fatalidade, a perplexidade juvenil permanece como um estado de ânimo constante. Esse é um Hamlet que cumpre seu destino trágico sem ter amadurecido, sempre cândido e - parece-nos - inocente, embora tenha percorrido até o fim a saga comum dos vingadores. Há uma verdadeira carnificina ao redor, mas, ainda assim, a morte do príncipe no quinto ato é o assassinato inexplicável de um adolescente promissor. É esse o sentido e também o sentimento que perdura na composição de Wagner Moura. E talvez seja esse o viés apropriado para uma época em que as propostas filosóficas hegemônicas se recusam a traficar com a esperança. Diante de uma razão que só analisa e não propõe, o outro lado do personagem vem à tona com a função de contrapeso. Quase por necessidade de um jovem ator e dos jovens que ocuparão a platéia, essa encarnação do príncipe minimiza o desencanto do filósofo e a acidez do fingidor para expor com maior nitidez o temperamento brando, a disposição afetuosa e - por breves momentos - o humor do histrião bem-sucedido. Sob a direção de Aderbal Freire-Filho, o espetáculo se subordina sem conflitos visíveis ao desempenho do ator central. Todos os movimentos são lógicos e aprimorados tecnicamente para pôr em andamento uma intriga complexa do modo mais claro possível. Personagens cujo comportamento, tonalidade de fala, vocabulário e vestimentas se referem à vida contemporânea devem formar um entorno social veraz para uma concepção baseada na figura de um moço sensível e ardente. Em vez de vilões ou agentes da máquina política e social emperrada em um processo sucessório (perspectiva explorada muitas vezes em encenações do século passado), os personagens entram em cena a partir de um espaço onde são visíveis os atores e o momento da transformação. O mundo de Hamlet nasce durante o espetáculo, é nosso contemporâneo e, portanto, tem a intenção de significar o presente. Desse modo, as figuras que cercam o núcleo dramático não devem ser muito espessas na sua qualificação moral e psicológica. Tal como o fantasma que o espetáculo dissolve entre vários atores, a mãe, o tio e os outros cortesãos respondem às invocações do protagonista e condutor de jogos teatrais. Nem tudo funciona bem dentro dessa proposta. O Rei Cláudio, por exemplo, perde junto com a majestade a malvadez, o poder de aterrorizar e ferir. Tonico Pereira adota a postura quase relaxada, adequada à representação de malandros e oportunistas dos dramas modernos. Para se afastar da solenidade usualmente vinculada às tragédias, compõe uma figura titubeante e apalermada diante dos confrontos. Não é o melhor modo de dimensionar um usurpador, fratricida e incestuoso. Resultam desse tratamento conflitos anêmicos em que o príncipe se agita diante de uma figura sem força aparente para contra-atacar. Para outros intérpretes, o problema, ao que parece, é de preparo técnico e amadurecimento porque as figuras secundárias da trama são representadas por atores apressados, assustadiços, aparentes novatos loucos para se refugiar outra vez nas laterais que os tornam pouco visíveis. Se isso ocorresse com um personagem, seria problema do ator. Mas, como deslizam velozes e igualmente atrapalhados, Horácio, os Atores e os Coveiros (salva-se Fábio Lago) e outros personagens, pode-se supor que há aí algum propósito ainda irrealizado. Ainda imperfeita, rangendo nos gonzos, essa encenação tem o suporte de uma idéia firme e uma tradução visual esplêndida, assinada por Fernando Melo da Costa e Rostand de Albuquerque. O que ainda faz falta é a sedimentação do trabalho do elenco. Fosse um pouco mais sólido, um pouco mais pausado e, sobretudo, uma pitada menos trivial, o mundo ao redor do príncipe seria ainda reconhecível como um universo onde ocorrem coisas que poderiam ter acontecido conosco.

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