Três solos inesquecíveis

SP vive o privilégio de ter em cartaz, ao mesmo tempo, três monólogos com atores do primeiro time: Fernanda Montenegro, Sergio Britto e Elias Andreato

PUBLICIDADE

Foto do author Redação
Por Redação
Atualização:

Fernanda - Viver sem Tempos Mortos Mariangela Alves de Lima Entre os modos possíveis de representar uma figura histórica, Fernanda Montenegro decidiu arquitetar seus espetáculos sobre o alicerce poroso das recordações de Simone de Beauvoir. Em vez da mimetização rigorosa de uma intelectual muito conhecida, cujas teses são ainda hoje louvadas ou combatidas com igual intensidade pelos seus pares na França e em outros países de vocação francófila, a recriação da atriz brasileira privilegia o fluxo atemporal e idiossincrático da memória. Citações fiéis de trechos da pensadora e romancista permitem reconhecer a fonte, mas é, antes de tudo, o movimento incerto da consciência que inspira a construção da personagem. Uma vez que a autora de Viver Sem Tempos Mortos é também a atriz, o que se vê em cena é a ação do pensamento, ou seja, uma personagem que vai se constituindo enquanto fala. Não sabemos se por afinidade ou por decisão, esse procedimento narrativo corresponde a uma tese central da filosofia existencialista: o ser é constituído por atos e essa atividade incessante será sempre escolha do sujeito entre ações possíveis em face das circunstâncias. Por essa razão, há em cena uma consciência que, embora tenha um corolário definido no primeiro parágrafo, continua trabalhando a demonstração, tateando a comunicação com o outro, deixando na obscuridade zonas de afetividade sobre as quais não têm clareza. Teria sido mais fácil (e também demasiado previsível) que uma atriz, habituada ao protagonismo desde o início da carreira, recriasse a dimensão estelar e a postura combativa, por vezes francamente arrogante, de uma pensadora celebrizada por seu combate ao moralismo hipócrita da ética burguesa. No entanto, no lugar dessa assertividade está a investigadora honesta que, na intimidade de uma relação epistolar, rememora e avalia o desenrolar de uma ligação de amor e amizade. E é essa mulher que, embora tendo vivido muito e pensado com método, reconhece o que não sabe e investiga sua situação no presente de cada momento, que se desenha na interpretação de Fernanda Montenegro. Muito diferente, sem dúvida, da persona oferecida por Beauvoir aos meios de comunicação. Quase tímida ao endereçar a fala inicial ao interlocutor diante de si, a personagem permanece enquadrada no confinamento de uma cadeira. Aos poucos, o relato adquire a serenidade de quem tem a prática do magistério. A história pessoal que inclui alguns acontecimentos da meninice, da juventude e da maturidade e, sobretudo, incidentes relacionados ao companheiro Jean-Paul Sartre, é transmitida com a inflexão de uma mestra decidida a fazer-nos ver algumas verdades exemplares. De modo bem diferente, as conclusões estimuladas por esses episódios vão-se refletindo aos poucos no rosto da intérprete, animando movimentos das mãos, modificando a postura corporal. Milimétricas, essas mutações físicas não correspondem a nenhuma convenção de causa e efeito. Pelo contrário, parecem provir de uma agitação subconsciente, que tanto confirma como contraria o sentido literal das palavras. Do mesmo modo que a contingência não é uma determinação absoluta para quem acredita que o destino do homem é a liberdade, a ponderação do valor ético dos atos exige o trabalho integrado sobre o intelecto e a vontade. Nada é apenas o que parece, nada pode ser aceito pelo valor de face. Por vezes em desacordo com a ousadia do enunciado, a linguagem do corpo é a da economia minimalista, fiel ao tempo histórico a que se refere o espetáculo. Em meados do século passado, no universo restrito da intelectualidade europeia, o comportamento libertário radicava-se antes na vida privada, onde era exercido (com algum sacrifício por parte das moças burguesas) e, em seguida, tornava-se público nos textos onde escolha e responsabilidade eram termos conjugados simultaneamente. Alguma coisa desse pudor violentado pelo dever permanece na interpretação de Fernanda Montenegro nos momentos em que a personagem se refere aos diferentes estágios do convívio sexual com Sartre. Nesse particular, a contingência histórica permanece como signo útil para distinguir a finalidade dessas confissões ao tempo em que foram proferidas no mero exibicionismo. Testemunhar sobre a própria sexualidade era, então, para Simone e outras mulheres, um modo de reivindicar para o "segundo sexo" a igualdade de direitos. Leitores de Simone de Beauvoir talvez se espantem com a entonação recatada de algumas conclusões, com os indícios de uma timidez recalcada a fim de vencer as exigências da militância, com o reconhecimento lento e quase delicado do conteúdo afetivo de certos fatos rememorados na correspondência endereçada ao companheiro de uma vida inteira. Pode ser que a atividade de uma leitora especialmente arguta, que transpõe a superfície do texto para explorar os meandros da subjetividade que o produziu, tenha auscultado a pulsação que precede a linguagem. Parece-nos, contudo, que essa paleta de entretons provém de Fernanda Montenegro. Entre a atriz e a sua personagem há, sem dúvida, a identificação pela ascese, porque ambas "transcenderam" (essa é uma palavra estimada por Beauvoir) aos atavios superficiais dos respectivos ofícios. Mas há também um desacordo substantivo porque, na ficção de Viver Sem Tempos Mortos, a paixão juvenil por Sartre jamais liberta a missivista e a solidão geme baixinho, prestes a encarnar-se em um verso camoniano. Serviço Viver Sem Tempos Mortos. 60 min. 16 anos. Teatro Sesc Anchieta (320 lug.). R. Dr. Vila Nova, 245, 3234-3000. 5.ª e 6.ª, às 21 h; sáb., às 20 h; dom., 18 h. R$ 30. Até 28/6 Elias - Doido Mariangela Alves de Lima Há outros atributos apreciáveis em Doido, mas o mais relevante é o senso de oportunidade. Sendo o teatro uma arte que captura o seu espectador no momento presente e no lugar em que se encontra, o espetáculo de Elias Andreato bate firme com o martelo do tempo no cravo do espaço. O tempo é, neste caso, a tarde de domingo, quando os paulistanos inquietos, aqueles que não se satisfazem com o consumo de matérias sólidas, rondam os parques, os cinemas, as livrarias e os teatros em busca de substâncias mais etéreas para abastecer a imaginação e a inteligência. E o lugar é o interior de uma livraria, quase uma extensão das estantes onde os fregueses (que agora se chamam clientes em qualquer circunstância) bisbilhotam novidades com um alheamento que só se vê em livrarias. Não há pessoa mais esquecida de si ou do outro quando em público do que o leitor escolhendo o livro que vai levar para casa. É um momento de concentração e também de soberania diante do vastíssimo universo do saber que as prateleiras ostentam. Enquanto lê trechos disto ou daquilo, confere orelhas e contracapas ou se deixa seduzir pelas capas, o possível comprador exerce o discernimento, gratifica o sentido da visão e do tato, projeta-se, por meio da experiência da parte, na totalidade que cada livro promete. Pois quem atravessa o limite entre a livraria e a sala de espetáculo contida nela como um nicho encontra uma aventura semelhante na reunião de poemas que Elias Andreato tramou como um texto contínuo, formalizou para o pequeno palco do Teatro Eva Herz e interpreta com o prazer evidente dos leitores habituados ao convívio com a poesia. Em um passeio aparentemente aleatório por escritas de diversos períodos, estilos, gêneros literários e nacionalidades, o espetáculo acaba por definir, no plano temático, o perfil do leitor-intérprete, apresentando-se publicamente como um entusiasta do componente passional da criação artística. Quer se trate de Fernando Pessoa, William Shakespeare ou até Albert Camus, a ótica do criador do espetáculo privilegia os momentos em que a escrita contempla o imponderável, a motivação inconsciente e a movimentação tempestuosa dos estados anímicos. Nem tudo se acomoda bem na sequência e há momentos em que seria desejável uma pausa, tal como faria o leitor de uma antologia ao transportar-se mentalmente de um século a outro, do teatro renascentista à poesia moderna, do verso livre ao soneto clássico. O fundo temático nem sempre é suficiente para amalgamar arquiteturas de composição que se contrastam mutuamente. De qualquer modo, descontada essa justaposição forçada pelo pressuposto de que todos os ímpetos criativos se assemelham, os textos são pronunciados com o ritmo, a clareza e entonação cuidadosa para que possam, além de comover, evidenciar a proeza da boa literatura. Quase sempre sóbrio e ótimo quando sóbrio, Elias Andreato exagera por vezes na autocomiseração do poeta-ator, personagem que representa como um recurso narrativo de ligação entre os textos. Sobretudo nos poemas que se referem à solidão dos amantes rejeitados, assunto estimado entre todos pelos poetas românticos, a interpretação extravasa o estilo sugerido pelos textos e se inspira no sentimentalismo lacrimoso das canções populares. São singelas e bonitas, em virtude da ascese e da precisão do ajuste entre a visualidade e o significado, as manipulações de objetos de cena. Um barco em chamas, ou talvez um barco embriagado, desliza sem rumo certo na tarde de domingo. Na outra margem espreita a manhã de segunda-feira. Serviço Doido. 60 min. 14 anos. Teatro Eva Herz (166 lug.). Livr. Cultura. Av. Paulista, 2.073, 3170-4059. Dom., às 14h30. R$ 30. Até 28/6 Sergio A Última Gravação de Krapp, Ato sem Palavras 1 Jefferson Del Rios A Última Gravação de Krapp é, sobretudo, a interpretação de Sergio Britto. A obra de Samuel Beckett tem esta bela contradição de ser interpretada por um dos príncipes do teatro brasileiro. O personagem é um escritor decrépito que escuta gravações que fez ao longo de sua vida. Um fracassado cuja última obra vendeu 17 volumes. Pois esse senhor entre o patético e o tragicômico é interpretado pelo vitorioso Sergio, que brinca com o passar dos anos como ator, diretor, professor e memorialista. Se o personagem encarna o vazio da vida, Sergio, ao contrário, tem bastante o que fazer. No entanto, a dupla Beckett e Britto desvela suas afinidades. A cultura mesclada de particular ironia, por exemplo. Se o autor irlandês escreveu na sua novela Molloy que "às vezes sorrio como se já estivesse morto", Sergio aqui passa ao espectador malícia e risada aberta nos segredos de cada frase. Estamos diante de uma obra singular, de alta invenção e catalogada como Teatro do Absurdo, definição avalizada por ensaístas de peso. Um deles, o inglês Martins Esslin, resume o projeto literário de Beckett (1906-89) como sendo a arte de usar o palco para reduzir a diferença entre a limitação da linguagem e a condição humana, o que ele tenta expressar apesar da sua convicção de que as palavras são insuficientes. Aliás, em outra novela sua, Malone Morre, se lê: "Tenho de falar, seja o que isso queira dizer. Não tenho nada a dizer, tenho de falar." É algo que toca os domínios da filosofia e da poesia e eis um encanto de Beckett: o humor reflexivo. Esse artista esguio, esquivo, de certa maneira bonito com seu perfil de águia de olhos penetrantes (e míopes), ele também teve algo de raposa, animal ardiloso e furtivo. Seu teatro inquieta há mais de meio século, mesmo depois de ter sido chamado, entre outras coisas, de derrotista e alienado (batalha perdida dos acusadores marxistas). A Última Gravação é uma obra de menor tamanho e repercussão que Esperando Godot, um monumento, mas nem por isso deixa de ser uma preciosidade. Nela o dramaturgo, de novo, vai a extremos. Em primeiro lugar, deixa nítido o uso do silêncio terrível ou com graça. Há desertos nos seus subentendidos. A diretora Isabel Cavalcanti informa que o ponto de partida do texto foi a doença e morte de um amor de juventude. Beckett apegou-se ao efeito impactante de um gravador antigo e rolos de fitas com a gravação de várias épocas desse cidadão chamado Krapp. Fragmentos da infância, sua autoindulgência nos tempos passados, palavras que não consegue mais captar o sentido. Inventário sonoro que, ao reouvir, ele comenta com irritação, riso, acréscimos. Ouvir a própria voz em determinadas circunstâncias pode ser uma experiência inquietante, como achar um diário renegado. O enredo contém elementos autobiográficos esparsos, sobretudo os de caráter familiar e amoroso. Beckett disse uma vez que Krapp tem carinho pelas figuras femininas, afirmação que diz respeito indiretamente às suas ligações , sobretudo duas mulheres com o mesmo nome (sua prima Peggy Sinclair e a excêntrica milionária americana Peggy Guggenheim). Romances findos, o que prevalece é o sentimento de finitude, o vislumbre da ampulheta escorrendo o tempo. Em seu minimalismo de silêncios eloquentes, é um espetáculo para grandes atores. Se Beckett observa o tédio, a última coisa que pretende é aborrecer o espectador. São Paulo teve recentemente uma versão com Antonio Petrin, intérprete de outra geração e temperamento, e o resultado foi sólido... Sérgio Britto, que atuou em boa parte do melhor do teatro Ocidental, faz agora uma terceira notável incursão a Beckett e com a nobreza de dizer: "Eu, ator, na minha solidão, aos 85 anos, tenho Beckett, tenho Krapp." Para qualquer diretor, contar com Sergio Britto é, a princípio, ter a encenação ganha, porque ele tem uma máscara dramática sempre convincente, mas Isabel quis mais de si e do intérprete numa montagem tão simples quanto rigorosa em termos de cenário, iluminação e música. Assim, o enigma beckettiano se impõe. O espetáculo tem uma segunda parte, o curto Ato Sem Palavras, breve brincadeira desse irlandês que correu o mundo e escolheu a França para viver, no idioma e na cidade de Paris. Fiel à sua persona de solitário, ao ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, em 1969, foi encontrado em sua casa no Boulevard Saint Jacques. Viajava pela Tunísia com sua mulher Suzanne. Quando, enfim, o fotografaram, lá estava ele: caminhando no deserto. Serviço A Última Gravação de Krapp e Ato Sem Palavras 1. 55 min. 16 anos. Teatro Sesc Santana (349 lug.). Av. Luiz Dumont Villares, 579, tel. 2971-8700. 6.ª e sáb., 21 h; dom., 19h30. R$ 5 a R$ 20. Até 14/6

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.