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Toque refinado do mestre Lubitsch

Sai no País caixa com quatro ótimas comédias musicais realizadas pelo cineasta alemão em Hollywood, entre 1929 e 1932

Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Lançado nos Estados Unidos há três anos pelo selo Criterion (Eclipse Series), a caixa com quatro comédias musicais dirigidas há quase 80 anos pelo cineasta de origem alemã Ernst Lubitsch (1892-1947) virou imediatamente um disputado item entre colecionadores americanos. Agora lançada no Brasil pelo selo Cinemax , a caixa traz alguns de seus melhores filmes, dois deles com a dupla formada por Maurice Chevalier e Jeanete MacDonald: Alvorada do Amor (The Love Parade, 1929) e Uma Hora Contigo (One Hour With You, 1932). Jeanete MacDonald aparece também no menor Monte Carlo (1930). Maurice Chevalier contracena com Claudette Colbert e Miriam Hopkins no delicioso O Tenente Sedutor (1931). Entre todos, o melhor é Uma Hora Contigo, exemplo máximo do que ficou conhecido como "Lubitsch touch" - o toque sofisticado, erótico, frívolo, gracioso e diabolicamente sedutor de um cineasta cuja inteligência e ousadia estava muito além do seu tempo. Veja trechos dos DVDs Em Uma Hora Contigo, por exemplo, Lubitsch coloca Maurice Chevalier falando diretamente para a câmera muito antes de Bergman usar o mesmo recurso para fazer seu cinema psicanalítico nos anos 1960. Lubitsch chega ao requinte de recorrer a um demorado "black out"? com vozes em "off" para simular as preliminares de um jogo sexual entre um infiel médico parisiense (Chevalier) e sua mulher (Jeanette MacDonald). Desconfiada do marido, ela praticamente o joga nas mãos de sua melhor amiga, tão confiável como madame Du Barry solta na corte de Luís XV. Para garantir que sua amoralidade não fosse um peso na bilheteria, o cauteloso Lubitsch transferiu a trama para outro país, livrando os americanos da "ameaça" da femme fatale e de maridos priápicos. O biógrafo do cineasta, Scott Eyman, já chamou esse país de Lubitschlândia - e com justa razão. Nele, tudo (ou quase tudo) é permitido para satisfazer o apetite sexual dos personagens criados por esse ex-ator de Max Reinhardt, inicialmente rejeitado pela América. Já conhecido como diretor de dramas históricos como Anna Bolena (1920), Lubitsch pisou pela primeira vez nos EUA em 1921, mas não recebeu nenhuma proposta imediata. Foi necessário um ano para que a atriz Mary Pickford o chamasse de volta para dirigir Rosita. Não é um trabalho memorável, mas a fase muda do diretor tem clássicos entre os melhores dos 72 filmes que dirigiu. Foi com o advento do cinema falado que Lubitsch encontrou o veículo de seu humor wit, típico da cultura judaica. Se o humor, como disse o filósofo francês de origem russa Vladimir Jankélévitch, é a evasão da má consciência pela liberdade, os diálogos maliciosos do diretor denunciam sua vontade de chocar burgueses americanos com insinuações de variantes sexuais - banais na República de Weimar, mas escandalosas para o tipo de público que os estúdios de Hollywood queriam conquistar. Assim, o humor resgata Lubitsch do desespero de assumir sua condição de exilado cultural num país dominado pela cultura de massa - os EUA -, em que os espectadores nunca se deram ao trabalho de ver filmes estrangeiros por preguiça de ler as legendas. Em O Tenente Sedutor, musical licencioso sobre um oficial que não paga seus credores e se envolve com uma violinista de cervejaria, a sequência do primeiro encontro da dupla tem um diálogo que deveria ser obrigatório em todas as escolas de cinema: Chevalier diz a Claudette Colbert que também é músico, um pianista. Ela, então, sugere que os dois formem um dueto - convite de evidente apelo sexual. O libertino retruca, dizendo que prefere música de câmara. Uma só frase basta para informar à violinista que ela nunca será a única na cama do sedutor tenente. O oficial, de fato, acaba casado com uma princesa virgem, da qual só não se livra porque a tímida aristocrata toma lições de amor e sexo com sua ex-amante violinista. E vira doutora no assunto. Conformada, a rival conclui: "Há garotas que começam tomando o café da manhã, mas nunca ficam para o jantar." Dita a reveladora frase, a violinista - versão atualizada do azarado "schlemazel" do folclore judaico - despede-se com um ousado beijo na boca da aluna. Isso em 1931. Infidelidade é o tema preferido de Lubitsch, seguido de perto por irmãos siameses - o fetichismo e o voyeurismo. Para livrar o espectador moralista de sua possível culpa, o diretor sempre arruma um jeito de incluir criados e criadas xeretas em suas comédias, desses que espiam pelos buracos das fechaduras. É o caso de Alvorada do Amor (1929), primeiro filme falado do cineasta. Dois anos depois de Al Jolson soltar a voz pela primeira vez no cinema, Lubitsch faz de seu musical pioneiro um veículo para celebrar as virtudes do som, com portas batendo em profusão na sequência inicial - imortalizando, ainda, uma antológica canção de Victor Schertzinger, Dream Lover. Chevalier canta para a plateia como se estivesse num café francês de boulevard. Tanto naturalismo anuncia o que vem pela frente: um desfile das pernas de Jeanette MacDonald, a exibicionista rainha de Sylvania, que dá expediente de lingerie e não se parece em nada com a futura e comportada parceira de Nelson Eddy em outros musicais de Hollywood. Chevalier, em Alvorada do Amor, é o liberal que defende o conhecimento carnal imediato entre apaixonados, mas parece sofrer de ejaculação precoce diante da intimidadora rainha. Cada vez que ouve o bombardeio da artilharia, recolhe-se com medo de competir com o ensurdecedor barulho dos poderosos canhões. A situação se ajusta e o diplomata, vítima desse casamento arranjado - e com dificuldades para manter a braguilha fechada -, acaba quebrando o protocolo. O homem, afinal, é, como se diz, o rei do boudoir nos filmes de Lubitsch. Ou era, até surgir Ninotchka (1939), um dos melhores filmes de Greta Garbo (o primeiro em que a atriz ri) e um exemplo do cinema protofeminista. Na primeira versão de O Céu Pode Esperar, muito apropriadamente chamada O Diabo Disse Não (Heaven Can Wait, 1943), Lubitsch faz uma espécie de mea-culpa em nome dos chauvinistas, ao colocar um aristocrata mulherengo diante dos portões do inferno a recordar seus 25 anos de casamento. O diabo, depois de ouvir sua história, diz que ele merece ir para o céu por fazer tantas mulheres felizes. Não seria o caso do parceiro de Jeanette MacDonald em Monte Carlo (1930), a compulsiva jogadora que encontra num cassino um acompanhante para reverter sua má sorte. Sem o carisma de Maurice Chevalier, o escocês Jack Buchanan não convence como sedutor disfarçado de cabeleireiro. Leva mais jeito para cabeleireiro. Além disso, a cópia do filme, em más condições, não ganhou muito com a restauração digital, exceto pela qualidade do som. Mas as tomadas de Jeanete MacDonald no trem estão muito deterioradas, assim como as cenas noturnas. A edição dos outros DVDs é impecável. De qualquer modo, é preciso lembrar que se trata de uma recuperação histórica. Alguns filmes de Lubitsch, como A Chama (1922), que encerra sua fase alemã, se perderam e hoje tudo o que resta dele é um fragmento de 43 minutos, recentemente exibido numa mostra do Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo. Fez também parte dela o primeiro documentário realizado sobre a obra do cineasta, Ernst Lubitsch in Berlin - From Schoenhauser Allee to Hollywood, de Robert Fischer, que acompanha os primeiros anos de sua carreira na Alemanha, nas décadas de 1910 e 1920. Teria sido um bom extra para essa preciosa caixa.

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