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Tônica engajada da 31ª Bienal de São Paulo é discutida

Evento termina no próximo dia 7 de dezembro

Por Camila Molina
Atualização:

O grande Mapa desenhado pelo chinês Qiu Zhijie é a primeira obra que os visitantes da 31.ª Bienal de São Paulo veem depois das catracas de entrada da exposição. Não por tornar-se especialista em cartografias, um dos ricos territórios de suas criações, desde a década de 1970, mas ser uma das mais respeitadas vozes da arte brasileira, Anna Bella Geiger, indagada sobre esta edição do evento, escolhe justamente o trabalho de Qiu Zhijie como simbólico. “Está havendo uma crise enorme no contemporâneo”, afirma a carioca, de 81 anos, diante do monumental painel traçado sobre a parede.

“Recorrência de clichês”, “desinformação”, “falta de conhecimento estético” são algumas das características que Anna Bella Geiger enumera ao observar o mapa imaginário, utópico e, em algumas passagens, antropomórfico do chinês. “Será que a história da arte não vale mais para nada?”, pergunta a também professora, de forma geral, ao pensar nesta 31.ª Bienal, que termina no dia 7. Apesar de ser uma edição cuja tônica e ética se dão em torno de um clima crítico sobre a sociedade e sobre o momento atual, Anna Bella identifica pouca elaboração na poiesis da maioria dos participantes da mostra. “Parece uma deriva do artista.” Nem mesmo panfletários chegam a ser os trabalhos da exposição, conclui.

"Mapa". Visitante observa o painel de "clichês" de Qiu Zhijie; abaixo, "Invention", de Mark Lewis Foto: Daniel Teixeira/Estadão

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“Há uma estética forte nesta Bienal, só não é a estética moderna que todos esperavam”, afirma o escocês Charles Esche, curador da 31.ª Bienal de São Paulo. “Estética não é sobre ser bom ou ruim, mas como as linguagens visuais são usadas”, ele continua. “É uma Bienal engajada socialmente, diferente de ser politicamente engajada. Na social, a arte é incluída, na política, é separada da economia e cultura”, diz.

Esche, assim, enumera o que considera pontos bem e malsucedidos do projeto que desenvolveu com time curatorial de maioria estrangeira. “Fiquei feliz de termos trazido a questão indígena e tentado construir um argumento que trouxe a religião”, analisa o curador. “Do lado negativo, acho que poderíamos ter trazido a experiência visual de uma maneira melhor, assim como ter trabalhado o programa educativo”, afirma Esche, que vai ser responsável pela Bienal de Jacarta de 2015, na Indonésia.

“A Bienal de São Paulo está inserida num contexto muito complexo em que a arte contemporânea não faz parte da grande maioria da população e neste sentido, senti falta de legendas que pudessem contextualizar as pesquisas dos artistas”, afirma a curadora independente Cristiana Tejo. Para o diretor da Coleção Patricia Phelps de Cisneros, Gabriel Pérez-Barreiro, a precariedade da mediação com o público nesta Bienal foi “uma irresponsabilidade”.

Simplificações. Do lado positivo, Barreiro, curador-geral da 6.ª Bienal do Mercosul em Porto Alegre, em 2007, analisa que a edição do evento se apresenta como uma “exposição mais longe possível do mercado de arte”. Entretanto, sua grande crítica está relacionada à baixa qualidade da maioria das obras da edição, “não que sejam feias, mas pobres, com simplificações de questões e conteúdos”. “É também uma exposição de difícil leitura no contexto brasileiro. O Brasil é um país que tem uma contribuição riquíssima em arte e política e não vi muito diálogo possível com as práticas locais, o que foi uma surpresa.”

“Gostei de vários aspectos desta edição, como a metodologia de trabalho (mais colaborativa e processual), o número mais enxuto de artistas participantes e várias questões importantes a partir de uma perspectiva descolonizada abordadas em muitos trabalhos (a exemplo das questões indígenas, religiosas, de ordem sexual, alternativas educacionais, etc.)”, continua Cristiana Tejo. A expografia assinada pelo arquiteto israelense Oren Sagiv também foi elogiada por ela e pelo diretor da Cisneros. ANÁLISE

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Peso e leveza em uma edição sem narrativa - Teixeira Coelho - Professor e escritorA narrativa é o que dá peso ao ser humano, sugeriu Lionel Thrilling, e lhe permite sentir terra sólida sob os pés para, daí, orientar-se. O contrário do peso é a leveza, e a leveza, social e existencial, é (quase sempre) insuportável, como Milan Kundera já narrou. Não sou adepto fundamentalista da necessidade de peso e a leveza não me assusta: os grandes problemas da humanidade, fora os ecológicos e biológicos, vêm das narrativas religiosas, ideológicas, históricas... Mas há de fato momentos em que uma narrativa impede um objeto e uma experiência de ficarem tão leves (e indiferentes) a ponto de sumirem da memória, do espírito e da vida. Uma exposição de arte pode fazer bom uso de uma narrativa.

A 31.ª Bienal de São Paulo não oferece uma narrativa, mesmo tendo um título e talvez um tema: Como (procurar, reconhecer, usar, etc.) coisas que não existem. Na apresentação da mostra, o Guia da visita observa que se trata de “dar espaço à complexidade e à flexibilidade, sem receio de conflitos e enfrentamentos. Esse estado de virada é nossa condição contemporânea e, por conseguinte, a desta 31.ª Bienal”. Complexidade e flexibilidade - que resultam da ausência das grandes narrativas e ao mesmo tempo a provocam, como sugere a reflexão pós-moderna - de fato marcam a contemporaneidade. E a 31.ª Bienal assume essa ausência e dela faz seu princípio. Nesse sentido, a prática da curadoria foi coerente com seu discurso.

Há nisso dois problemas, porém. A vida social e política está hoje de fato, como diz o Guia, “desordenada, às vezes enganosa, inconstante” e não “orientada para o futuro” nem no que está aí, nem no que é contra o que está aí. Mas essa não é a marca da arte contemporânea, ou de toda a arte contemporânea e atribuir-lhe essa imagem não é lhe fazer justiça. Flexível e complexa, conflitiva e corrosiva ela é: desordenada ou desorientada, nem tanto.

O segundo problema é que, assim como a sociedade é um conjunto de seres humanos sem ser ela mesma humana, mas, sim, algo que escapa do humano e tem de ser a ele devolvido, também uma exposição de obras de arte não é, ela mesma, obra de arte e não raro tem de ser devolvida, senão à arte (o que não é o caso), pelo menos a seu público. Para isso há recursos, um deles a curadoria. A tragédia da arte instala-se e cresce na distância enorme entre as perspectivas e expectativas do artista, de um lado, e as do observador-não-artista de outro, distância que sempre existiu e só aumentou com a arte contemporânea. Se uma exposição reproduz os traços da arte e se propõe como um análogo da arte, a tragédia é mais aguda. A curadoria da 31.ª Bienal manifesta a esperança de que, em contato com o que lhes é mostrado, os visitantes da mostra reorientem seu comportamento. Como a leveza desta bienal é enorme, como ela não se orienta para o futuro (não é “progressista”, o Guia diz) nem para o passado, não se vê como essa reorientação do observador poderá ocorrer. Esta bienal se apresenta segundo o antigo princípio do processo, que para ela se opõe à obra de arte (“esta edição não tem obras de arte”, diz o Guia). A arte pode ser um processo, mas não estou tão certo de que uma mostra de arte deva sê-lo: é que, não sendo obra de arte, uma exposição tem outros compromissos. Por exemplo, com o público - a menos que ele não mais seja público (dentro de uma bienal, porém, e desta, o público costuma ser público). Nesta bienal, contudo, a leveza é imensa, tudo flutua. Pode-se dizer que ela não tem uma narrativa por ter muitas, tantas quantas são suas “obras” ou obras. Só que, sem nenhuma ou com inúmeras, extremos que se tocam, o efeito é o mesmo: uma insuportável leveza.

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Se os textos do Guia forem deixados de lado e olhar-se para o que a bienal diz não ter, obras de arte, e que ela tem, os momentos de peso aparecem: na sala museográfica de Edward Krasinski, nos desenhos de Johanna Calle, nas histórias de Voluspa Jarpa, nos filmes de Mark Lewis... Com eles, a arte da bienal reata com a arte da narrativa - e com a arte. Não importa que as lanças de Krasinski sejam dos anos 60 (i.e., do passado), e que elas e outras obras não sejam só processo, nem que não se mostrem desordenadas e desorientadas. A arte-processo que está talvez querendo substituir a política falida e propor-se como espaço de gestão intercultural, como se diz, pode até ter seu lugar fora da bienal. Dentro dela, perde autenticidade. E sinceridade. Ou pelo menos não funcionou aqui. Enquanto isso, as obras de arte desta Bienal se impõem, com sinceridade e autenticidade. Vê-las foi bom. (Sempre é.)

31ª BIENAL DE SP Pavilhão da Bienal. Parque do Ibirapuera, portão 3; tel. 5576-7600. 3ª, 5ª, 6ª, dom., 9 h/19 h; 4ª, sáb., 9 h/22 h. Fecha 2ª. Grátis. Até 7/12.

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