Todos os talentos de Jacques Prévert

A exposição Paris la Belle, na França, e o lançamento em DVD, no Brasil, de Trágico Amanhecer resgatam um artista de gênio

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Por Luiz Carlos Merten
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Cidade-luz, Paris é a Meca e a Medina dos cinéfilos, que nela encontram, permanentemente, ciclos de filmes e autores que não podem ser rastreados com tanta facilidade em nenhum outro lugar do mundo. Mas Paris não é só uma festa de cinema. Se você quer saber o que ocorre no mundo do design e das artes visuais deve seguir de olho na capital francesa. O Centro Charles Pompidou, o Beaubourg, dedica uma grande mostra - até março - ao arquiteto e designer Ron Arad. Só para ver os móveis que ele cria - verdadeiras obras de arte, mas fica a dúvida se são também confortáveis - já valeria a pena ir à França, mas Paris, encerrada a grande retrospectiva Picasse et les Maitres, no Grand Palais, agora sedia, até dia 28, no Hôtel de Ville, a mais completa exposição sobre Jacques Prévert feita na França. Paris la Belle. O título vem de um curta que Jacques realizou em parceria com o irmão Pierrre, em 1928, Paris Express, e que foi rebatizado como Paris la Belle, ao ser resgatado, em 1960. Houve outras grandes exposições sobre o artista, antes, mas elas privilegiavam partes de sua obra - as colagens, as fotografias. N.T. Binh, crítico e historiador - autor de uma acurada análise da obra de Joseph L. Mankiewicz na coleção Cahiers du Cinéma - e Eugénie Bachelot-Prévert, neta de Jacques, coassinam a curadoria do evento que revela a multiplicidade dos talentos do grande artista. Se há um artista multimídia, é ele. Homem de teatro, cinema, poeta, autor infantil, pintor, compositor, deixou uma notável contribuição em cada uma dessas mídias. Eugénie sonhava com essa exposição há dois anos, quando se completaram 30 anos da morte de seu avô, em 1977. A falta de patrocínio, na época, inviabilizou o projeto, mas ela teve a sorte de encontrar N.T. Binh, que organizara em 2006, no Hôtel de Ville - a Prefeitura de Paris -, o evento Paris no Cinema e tinha cacife para propor outra grande mostra. Binh propôs Prévert. Por quê? No catálogo da exposição, ele explica singelamente - "Porque Prévert foi sempre um artista identificado com os parisienses..." O próprio prefeito de Paris, Betrand Deanoë, escreve, na abertura do catálogo, que, durante toda a sua vida, Jacques Prévert estabeleceu (e manteve...) uma excepcional cumplicidade com a capital francesa. Conhecedor das passagens mais secretas dos Grands Boulevards, amigo dos operários, dos pintores de Montmartre e dos escritores de Saint-Germain-des-Près, Prévert cravou a essência de sua poesia no coração de Paris e de seus habitantes. A questão é que não existe um Prévert, mas vários, compondo o itinerário de um artista que foi engajado - e libertário - como poucos. N. T. Binh sustenta que, durante toda a sua vida, Prévert não fez outra coisa senão tentar reencontrar a Paris de sua infância. A exposição estabelece etapas do percurso - a infância, próxima dos Jardins de Luxemburgo; a juventude, quando ele se liga aos surrealistas, integrando a república ?boullionnante? da Rua Chateu (Castelo). Após o rompimento com os surrealistas, Prévert produz para o teatro, escrevendo textos engajados para o grupo Outubro. Os anos 30 foram de muita agitação social na França. Prévert, que visitou a Rússia em 1933, voltou militante de causas radicais. Os operários da Citröen preparavam uma greve para hoje à tarde e lhe pediam um texto - ele o produzia num piscar de olhos. O Prévert dramaturgo vira roteirista de cinema, associando-se a Marcel Carné numa memorável série de filmes que instala a tendência do chamado ?realismo poético?. O maior desses filmes, O Boulevard do Crime (Les Enfants du Paradis, de 1945) foi considerado numa pesquisa, há cerca de dez anos, como a obra-prima de toda a história do cinema francês, mas a parceria Carné-Prévert inclui outros filmes, como Trágico Amanhecer (Le Jour Se Lève, de 1939), com a dupla clássica Jean Gabin/Arlétty, que acaba de sair em DVD. Como as coisas ocorrem por ciclos na obra de Prévert, em 1946, ele começa a se afastar do cinema, orientando-se para a poesia (com Paroles) e a canção. É muito interessante assistir aos trechos de filmes e aos clipes que mapeiam o Prévert roteirista e letrista. Ele produziu letras para Edith Piaf, Yves Montand, Juliette Gréco e Nat King Cole. Os três últimos apresentam suas diferentes versões de Feuilles Mortes. Para o espectador brasileiro, é um choque ver a musa do existencialismo cantar Folhas Mortas. Juliette Gréco foi o modelo de Maysa. Existem ainda o Prévert autor infantil, o pintor das colagens e o retratista. Amigo de Juan Miró, Pablo Picasso e Alexander Calder, Jacques brincava com Picasso e dizia que ele era um grande cineasta, embora não soubesse filmar. Picasso retrucava que ele era um grande pintor, mesmo sem saber pintar (nem desenhar). Suas colagens são de uma riqueza - e uma criatividade e um humor - extraordinários. O legado da exposição é que Prévert não se fixou em rótulos nem dogmas. Foi libertário de si mesmo. Criou-se, por isso, um verbo. O diretor Jean-Pierre Jeunet conta que, enquanto escrevia O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, ao dar-se conta de que algumas coisas simplesmente não iriam funcionar, ele pedia à sua roteirista, Guillaume Laurant - "Aqui, nós precisamos prévertizar."

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