Temática comum surpreende em BH

O imigrante foi personagem presente em espetáculos nacionais e estrangeiros do festival que terminou domingo em Minas

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Por Beth Néspoli
Atualização:

Foi um ''ano sim''. Com essa expressão, o mineiro marca os anos pares, quando há Festival Internacional de Palco & Rua de Belo Horizonte, mostra bienal, cuja 9ª edição terminou no domingo. Embora unidos em torno de alguns projetos comuns - atividades formativas e parcerias para reduzir custos na circulação de montagens especiais -, cada festival brasileiro tem características próprias. ''O Fit BH não seleciona sua programação a partir de temáticas ou conceitos'', afirma Carlos Rocha, diretor-geral do evento. ''A busca da curadoria é por pluralidade de linguagens, estéticas e temas.'' Sem dúvida vivemos num tempo em que a palavra diversidade, apesar de gasta pelo uso, define bem o que se produz nos palcos teatrais. Nesse aspecto, essa edição, que durou 11 dias e teve 34 espetáculos na programação, cumpriu o que prometia. Se as linguagens variaram, e muito, curiosamente um tema esteve presente, embora com abordagens distintas, em diferentes espetáculos - a migração, os deslocamentos humanos, cada vez mais intensos pelo Planeta, e suas conseqüências, como a violência e o tráfico de pessoas. Esse era o tema, por exemplo, desde o título, do espetáculo de um dos espetáculos que abriram o evento, Escravo, A Canção de Um Emigrante, da República Checa, um dos que já haviam passado pelo Festival de Londrina (Filo). Uma espécie de contêiner com rodas - que remetia a um só tempo às moradias precárias dos expatriados em terras alheias e ao transporte precário de imigrantes clandestinos em caminhões fechados - era o cenário dessa montagem de teatro-dança. A violência decorrente sobretudo da precariedade do ambiente e da rejeição enfrentada pelo imigrante foram os principais aspectos explorados nesse espetáculo de poucas palavras, vibrante expressão corporal e altissonante trilha sonora. Numa linguagem muito, muito diferente, o tema também subiu ao palco no espetáculo Nossa Senhora das Nuvens, do grupo equatoriano Malayerba, que flagra o encontro de Oscar e Bruna. Ambos vivem em terra estrangeira onde, eles ''sentem'', as pessoas os olham com raiva ou com pena. A montagem tem texto e direção de Aristides Vargas - um dos mais renomados autores latino-americanos -, que também atua com Maria del Rosario Francés. A dupla que conduz o público pela conversa desses dois imigrante que descobrem, num encontro casual, possuírem o mesma cidade de origem, mas lembranças distintas. O talento e a experiência acumulada de ambos são elementos fundamentais para a qualidade desse espetáculo. É um prazer a mais apreciar a forma como Maria del Rosario e Vargas transitam pelos diversos personagens de sua memória de exilados. Ora a dupla encarna a avozinha - a mulher que guarda a memória do povoado e consegue incomodar o poder com palavras - e seu neto meio fronteiriço, responsáveis por momentos líricos e comoventes, ora ambos encarnam dois jovens locais e Maria impressiona com sua incrível transformação, apoiada basicamente no corpo e na atitude, em homem libidinoso e grosseiro que lança suas tiradas diretamente para as moças da platéia. Como era de se esperar, o humor marca a abordagem do poder, e ambos provocam gargalhadas ao encarnarem o governador vaidoso e arrogante e sua esposa, a loira burra e submissa. Mas se a estrutura dramatúrgica de Nossa Senhora das Nuvens é fragmentada, a fluidez das memórias assim o exige, a idéia que tudo liga é o expatriamento. Todo ser humano é constituído por um acúmulo de vivências. Rituais coletivos e encontros familiares são momentos de balanços coletivos dessas vivências, que assim se renovam, algo vedado ao imigrante. A toda hora, a dupla Oscar e Bruna se davam conta de sua mais dolorida perda, a memória comum, impedindo até mesmo um gosto de ''reencontro'' entre eles. ''O exílio começa quando matamos as lembranças dos momentos felizes já vividos.'' A diferença de linhas estéticas não foi impedimento para que o tema aflorasse. Até no espetáculo francês Tangentes, um dos que integraram a programação de encerramento e prometia usar a linguagem circense para contar uma história baseada em O Barão das Árvores, de Ítalo Calvino, o tema surgiu, ainda que de viés. Numa espécie de prólogo, alguém fala num idioma estrangeiro e não consegue se fazer compreender. A partir daí, começa a apresentação, sobre uma imensa plataforma, de uma coreografia sem palavras. Misto de linguagem circense e dança, trata-se antes de mais nada de um espetáculo de virtuoses. Impressiona a técnica dos quatro atores. Os números são realizados com precisão e risco de grandes profissionais circenses e leveza de bailarinos - tudo parece simples, não se vê esforço em cena. Tangentes surpreende pelo tom sombrio, pela música cheia de arestas, numa partitura que parece feita para atritar nos ouvidos. Esteira rolante, muitos degraus, o globo giratório, um mastro, todos os recursos são usados para um coreografia que remete a trabalho estressante, rotineiro, realizado sob pressão e competição. Isolamento e mergulho no trabalho, características dos imigrantes, sobretudo os que não dominam o idioma estrangeiro. Para quem se acostumou a associar o novo circo aos ''ohs e ahs'' de encantamento, Tangentes pode ser uma decepção. Nada no espetáculo parece ter sido criado para produzir efeito, provocar palmas. Não deixa de ser uma atitude generosa dessa companhia, não por acaso chamada Le Mains, Les Pieds e la Tête Aussi (As Mãos, os Pés e a Cabeça Também), uma vez que o domínio que possuem da técnica corporal seria digno de muitos e intensos aplausos em cena aberta. Porém, o espetáculo provoca mais do que encanta. O problema do imigrante aparece explicitamente, mais uma vez, em Feito no Peru, Vitrines para Um Museu da Memória, do Grupo Cultural Yuyachkani. Definida pelo diretor Miguel Rubio Zapata como instalação, essa montagem é constituída por seis nichos, cada um deles com um ator, seis recortes culturais, com temas distintos. Num deles, um ator calmamente, abre suas malas e tira delas objetos e, depois de alguma interação com a platéia, as arruma cuidadosamente e parte com elas. A imagem remete a dois momentos do imigrante, a despedida, levando objetos que na terra natal fazem parte do dia-a-dia como guloseimas ou camisas do time e, no exterior, viram souvenirs de gente saudosa ou ''muamba'' vendidas meio clandestinamente por ambulantes em ruas de cidades estrangeiras. Feito no Peru, por sua própria estrutura, é uma espetáculo excessivo, seis nichos, com ações simultâneas, sons que se entrecruzam, e alguma irregularidade. Um dos mais expressivos chama atenção pela transformação do ator. Inicialmente, a imagem remete ao latino ''mirrado'', raquítico, que ocupa, vestido num terno, com atitude submissa, uma das vitrines cheia de folhas de coca, ouro e prata. Aos poucos, usando recursos como uma máscara dourada, ele se transmuta num deus inca e ganha impressionante dimensão física. Mas ainda assim, o tempo todo, esse vitrine explora a contradição entre a riqueza e a dizimação dessa cultura, não só pelo saque material, mas pela corrosão dos sentimentos de identidade cultural e dignidade humana. Um dos momentos, esse ator exibe, com humor, uma garrafa de inca-cola. O tema dos deslocamentos humanos também se fez presente no espetáculo Congresso Internacional do Medo, do grupo Espanca!, produzido pelo Núcleo de Festivais Internacionais de Artes Cênicas, entidade que une os festivais de Belo Horizonte, Brasília, Londrina, Rio, S. José do Rio Preto e Porto Alegre. Uma suposta mesa de debates unindo representantes de diferentes culturas abre esse espetáculo, o terceiro desse grupo mineiro, que já criou os bem-sucedidos Por Elise e Amores Surdos. Com direção de Grace Passô, que desta vez assina a dramaturgia em parceria com os atores do grupo, o espetáculo, antes de mais nada, reforça uma virtude desse grupo que parece disposto a sempre renovar-se e jamais repetir uma fórmula de sucesso. Ousado na forma, cuidado nas interpretações, pode-se detectar algumas marcas que já integram a identidade do grupo, como a linguagem poética feita de um lirismo seco, sem excessos, que se faz presente, sobretudo, na invenção dos supostos idiomas dos palestrantes e de sua tradução simultânea. Desse recurso inicial, Grace Passô e seus atores não só tiram humor como revelam o perfil dos personagens, as relações em jogo. No primeiro bloco, dá-se o desmascaramento do que deveria ser um compartilhamento de saberes em um mera disputa de vaidades ou meio de sobrevivência - infelizmente algo bastante comum em fóruns similares. A partir daí, numa passagem ainda não bem resolvida, o espetáculo revela que só o profundamente humano, nascimento e morte, é capaz de agregar os diferentes. Arriscado conceitualmente - a negação de conhecimento acumulado e a pregação de uma volta à natureza -, parece falar também de um desejo do grupo: poder esquecer a própria história, poder voltar à comovente humanidade de Por Elise. Seja como for, a carreira desse Congresso apenas começa, há tempo para acertos.

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