PUBLICIDADE

Taunay, deslocado nos trópicos

Historiadora diz que pintor sentia dificuldade para ''traduzir''a realidade da corte emigrada de D. João VI

Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Habituados a engrandecer figuras napoleônicas em pantagruélicas pinturas históricas, os pintores franceses que desembarcaram no Brasil em 1816 encontraram um ambiente bem diferente daquele a que estavam habituados na França. Formado pela Academia de Artes Francesa, o neoclássico Taunay viu-se sem emprego e isolado em sua terra quando Napoleão caiu. Chegando ao Brasil, tampouco conseguiu se enturmar. Virou um outsider, esperançoso de ser convidado a dirigir a Academia brasileira que, diziam, um dia seria criada. Como se não bastasse seu isolamento, ainda teve de concorrrer com Debret, mais esperto e com trânsito livre na corte de D .João. O fato de Taunay ser um pintor de paisagens e Debret estar habituado a retratar temas históricos não decidiu sua sorte na corte brasileira, considerando que Debret parecia ter mais trânsito entre a família real? Essa foi a armadilha em que Taunay caiu. Primeiro, é preciso esclarecer que não havia essa Missão Francesa de que tanto falam, mas, antes, uma colônia de artistas franceses estabelecidos no Brasil. Diria que, sem a pretensão de traçar uma hierarquia, Taunay fazia parte da Academia Francesa e Debret, não. Isso é uma evidência. Taunay vinha com licença da Academia e Debret pretendia um lugar nessa mesma Academia. Debret, contudo, era um pintor de história, Era, além disso, primo de David e fazia parte do seu ateliê. O que a carta de Taunay deixa evidenciado é que ele tinha a intenção de ser o pintor do rei, ou, ao menos, um preceptor dos filhos do rei. O que me parece ter acontecido é que Taunay se isolou em sua paisagem, transformando-se num pintor melancólico pela dificuldade de pintar os trópicos, desde a sua luz até a escravidão. Já Debret usou o que conhecia para se transformar, de fato, num documentarista da corte. Parece-me que foram mais os arranjos internos que fizeram com que Debret se aproximasse do rei e ganhasse uma posição na Academia como um pintor brasileiro. Já Taunay sempre foi um pintor entre dois mundos. Existe uma grande diferença entre o Brasil pintado por Taunay e o retratado por Debret. Primeiro, Taunay não encontrou aqui nenhum referencial acadêmico e não conseguiu captar a luz dos trópicos. Debret, ao contrário, parecia mais à vontade retratando o cotidiano dos escravos. Ao que você atribui essa dificuldade de Taunay enxergar o Brasil? Essa questão do verismo em Debret é complicada. Existem estudos sobre Debret, entre eles o do crítico Rodrigo Naves, que mostram Debret tentando aplicar seus conhecimentos de arte clássica antiga ao retratar os escravos. Boa parte desses escravos são bem nutridos, com aparência de gregos. As poucas telas em que Debret retrata a violência foram até censuradas - como aquela famosa que mostra um feitor mestiço dando chicotadas num escravo. Considero que ele documentou a corte da maneira como os Bragança gostariam e da maneira como uma certa literatura francesa gostaria - a de que este era um país pitoresco, mas civilizado. Os escravos passeiam ordenadamente, embora tenham correntes nas pernas, apenas detalhes na composição. Já Taunay, em suas cartas, mostra-se bastante atormentado com a escravidão. Diz , constrangido, que foi obrigado a comprar dois escravos. Em seus quadros, muitas vezes ele subverte a hierarquia, retratando-se ao lado de seus escravos. A capa do livro mostra uma paisagem na Barra da Tijuca em que os escravos apenas observam Taunay, sem carregar seu guarda-chuva, disposto ao lado. Ao mesmo tempo, eles trabalham. Como notório miniaturista, ele usa de sua destreza para mostrar esse embate, esse paradoxo, nos detalhes. Alguns deles têm de ser vistos com lupa. As telas de Taunay são muito, muito fortes, porque não facilitam, mas causam um mal-estar justamente por conta do contraste entre esse paraíso edêmico, pacífico, e a violência que ganha o lugar do detalhe. Voltando um pouco à questão do olhar nostálgico que os pintores franceses tinham, a ponto de idealizar e querer reconstruir aqui a Arcádia, existe algum documento em que Taunay fale dessa dificuldade de pintar a luz dos trópicos, dificuldade, aliás, que não só os pintores franceses tiveram, mas também os holandeses, que pintaram o Brasil como se estivessem diante de uma paisagem holandesa, entre eles Frans Post, cuja telas , invariavelmente, mostram dois terços de céu e apenas um terço de terra? Ele diz isso o tempo todo, que "estamos no país do sol". Nas cartas, ele reclama da quantidade de verde que não cabe na paleta, do céu "azul demais", enfim, de uma série de fatores. Para mim, no entanto, esse contraste entre documento escrito e realização é muito importante. Taunay, em todos os seus escritos, revela seu embaraço com os trópicos, embora isso não aconteça só com ele. Taunay, além de tudo, teve o azar de nascer numa época de embate entre acadêmicos e românticos. Ele é confundido com os últimos, tudo o que não queria, justamente em função das cores, consideradas excessivas. Você mencionou Frans Post e, em minha opinião, ele lembra mesmo Post, porque acordava cedo para aproveitar a luz da madrugada, tentando evitar o sol do Brasil, que "filtrava" e "atrapalhava" toda a coloração da tela. Além do mais, ele não consegue retratar essa paisagem com fidelidade. Coloca vacas pastando em lugares improváveis, como na praia, marinheiros napolitanos, árvores italianas, enfim, tudo o que lhe traz a Europa à lembrança. Por falar nisso, o que vem para a mostra de Taunay no Brasil? Tive uma bolsa da Guggenheim que me permitiu viajar e planejar essa primeira exposição internacional de Taunay, que abre em 6 de maio, no Museu Nacional de Belas Artes, e chega em julho à Pinacoteca de São Paulo. Vêm todas as pinturas da fase italiana, as pinturas do período napoleônico, que são imensas, além dos trabalhos que estão em Versalhes e no Louvre. São 80 telas das mais de 600 que ele pintou. Taunay era um outsider dentro do grupo a que também pertencia Debret e não tinha nada a ver com Rugendas. Ele sofreu, efetivamente, com a bagagem cultural que trazia. Se não veio pintar nem o povo nem a corte, como Debret, o que ele procurava, de fato, no Brasil? O que o diferenciava dos demais franceses? Em primeiro lugar, ele traz uma situação política distinta. Taunay pede licença à Academia e fica aqui enquanto a licença dura, encarando essa como uma passagem que enriquecerá sua posição acadêmica. Taunay sempre foi um moderado. Na época da Revolução, foi morar na propriedade de Rousseau, que admirava, e reproduziu na Tijuca um pouco do jardim de sua casa. Ele me parece sempre o homem errado no lugar errado. Os outros pintores franceses pareciam mais identificados com o modelo da pintura histórica napoleônica, a pintura consagrada à elevação do Estado. Tanto que Debret fazia isso no ateliê de David e mesmo Montigny também servia a Napoleão na Westfália. Havia uma diferença de perspectiva política e a conseqüência imediata é a resistência de Taunay em entrar inicialmente na corte e servir ao monarca brasileiro. Tanto que, às vezes, fica difícil identificar D. João ou dona Carlota, de tão diminutos que ficam nas telas. Além disso, Taunay tinha um projeto artístico pessoal. Muitos historiadores atribuem ao conde da Barca (Antonio de Araújo e Azevedo) a idéia de criar a Academia de Belas Artes, sugestão que teria dado a D. João VI, mas essa história teria começado um ano antes de a família real chegar ao Brasil em 1808, isto é, em 1807, quando Napoleão começou a pressionar o governo de Portugal. Taunay tinha informações privilegiadas sobre essa possível academia brasileira antes de tomar o rumo dos trópicos? O conde da Barca era um afortunado. É inegável que durante uma época ele teve uma influência forte sobre a família real, mas não podemos esquecer que estamos em 1816 e o reatamento com os franceses tinha apenas um ano quando Taunay aqui desembarcou. Pesquisei muito e em nenhum autor vi o termo "missão francesa". Queria entender quando o termo surgiu e verifiquei que a primeira menção é feita pelo bisneto de Taunay, Afonso, que seria seguido pelos demais historiadores. Constatei também que o primeiro crítico a contestar essa história de "missão francesa" foi, de fato, Mário Pedrosa. Por que uma missão francesa? Por que o Brasil iria contratar artistas de um ex-inimigo? Será por que Portugal não tinha tradição pictórica como a França? Não, acho que não. Portugal tinha bons artistas. Tanto é verdade que eles reclamaram e acabaram assumindo a direção da Academia logo que ela foi criada. Os franceses exportavam, na época, a idéia de que eles encarnavam a cultura e, sem dúvida, eram os artistas mais requisitados, embora existissem os holandeses e os retratistas ingleses. Mesmo quando a família real chegou, já existiam artistas da escola fluminense, que fariam bons retratos de D. João. Ele recebeu, sim, os artistas franceses, mas não como uma missão oficial. Não havia ainda nenhum projeto de Academia, que só seria formada em tempos do Primeiro Reinado. Em todo caso, tanto Taunay como os outros estavam informados por Humboldt sobre a Academia do México. A perspectiva de ser criada a brasileira pode ter atraído os franceses. O fato de Debret ter mais facilidade de circular na corte que Taunay se devia ao caráter extrovertido do pintor, ao parentesco com Jacques-Louis David ou à facilidade de integração ao meio social brasileiro? É difícil dizer, mas tanto Debret como Montigny estavam acostumados a servir a corte. Eles sabiam como produzir grandes telas e grandes monumentos. Montigny foi um grande arquiteto e um grande intelectual. Quando eles chegaram, foram recebidos com fogos de artifício e a descrição de Debret do evento é até engraçada, porque ele não sabia se esses fogos eram para recebê-los ou se uma nova guerra estava estourando. Mas logo ambos, Debret e Montigny, foram convocados para fazer as exéquias de dona Maria. Ao contrário de Rugendas e outros pintores viajantes, Taunay não usa muitos bichos e plantas exóticas em suas paisagens. Por que a paisagem de Taunay é tão anti-tropical? Arrisco dizer que Taunay, no final, é um vitorioso, porque introduz, de fato, um tipo de representação do Brasil: se nós não temos a maior das catedrais, temos a maior das florestas; se não temos os maiores palácios, temos os maiores rios . Sua pintura é um tributo à natureza brasileira, mas a natureza civilizada do Brasil. Idealizada, você quer dizer... Totalmente, porque Taunay era um rousseauniano, um cultor da Arcádia e a gente sabe que a Arcádia nunca existiu, que a Arcádia real é um terreno pedregoso. É evidente que ele queria encontrar isso no Brasil. Taunay domestica os trópicos, de fato. Ele sabia que telas desse tipo chocariam muito menos os franceses que pinturas muito exóticas. Por outro lado, acho que ele se contaminou com a luz tropical, como provam telas como Moisés Salvo das Águas, que é uma citação do Poussin, ou São João Batista, em que transporta a cena bíblica para os trópicos. Na última parte do livro você fala da volta de Taunay à França. Quais eram as principais influências dele e como localizá-lo em sua época? Ele tinha uma relação ambivalente com David. Eles freqüentaram a Escola de Roma na mesma época, foram colegas, mas, na briga entre Le Breton e David, ele não toma posição. Taunay tinha grande admiração por Poussin, seu modelo, que conferiu à paisagem um caráter ideal, moral, de elevação, e Claude Lorrain, que não é um pintor das catástrofes, mas da Arcádia pacífica. Ele também sofreu influência dos holandeses, o que explica a presença de vacas pastando nas praias. Como a família real via esses pintores franceses? Para ela foi sopa no mel, porque passou a contar com um exército de artistas para elevar a monarquia. Como soberano de um império, D. João precisava mostrar aos europeus que o Império continuava saudável e nada melhor que ter à disposição artistas neoclássicos, acostumados a elevar o Estado. Você pega o pano de boca da coroação de D. João por Debret e vê um imperador nas nuvens. Debret confere legitimidade a ele. Na perspectiva da Coroa, isso foi fundamental. Ela construiu, sim, arcos do triunfo, pirâmides, todo um cenário frágil. Mas um cenário necessário.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.