Tarsila do Amaral ganha primeira exposição importante nos EUA

Após quase um século de suas principais obras, artista é 'descoberta' em mostra no MoMA

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Por Tonica Chagas
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No Brasil, as imagens que a paulista Tarsila do Amaral (1886-1973) criou ilustram até jogos de quebra-cabeça em lojas de brinquedo e livrarias, mas nos Estados Unidos seu nome ainda soa desconhecido. Com atraso de quase um século depois de ter pintado Abaporu, considerada a obra de arte brasileira mais valiosa, isso talvez mude um pouco a partir do domingo, dia 11, quando o Museum of Modern Art (MoMA) abre a exposição monográfica Tarsila do Amaral: Inventing Modern Art in Brazil.

'Abaporu' (1928), de Tarsila do Amaral Foto: Coleção Malba

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A mostra, que se concentra no trabalho produzido por ela na década de 1920, é a primeira individual da artista apresentada por uma grande instituição cultural dos Estados Unidos. Mesmo para o MoMA, Tarsila é novidade. Um dos últimos esboços para a tela Figura Só, de 1930, recém-doado ao museu, é o primeiro trabalho dela incluído na sua coleção.

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A data da estreia de Tarsila em Nova York coincide com um marco histórico para a arte brasileira. Em 11 de fevereiro de 1922, foi aberta no Teatro Municipal de São Paulo a Semana de Arte Moderna, na qual artistas e intelectuais apresentaram novas formas de expressão libertas da estética do século 19, regida pela tradição europeia, e abriram caminhos para a invenção de uma arte nacional independente e moderna.

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Tarsila não participou pessoalmente daquela manifestação porque estava na Europa. Mas, criando pinturas que transcrevem visualmente o discurso antropofágico, movimento cultural com maior destaque naquele período, ela se tornou uma das figuras principais na gênese e no desenvolvimento da arte moderna brasileira que a semana preconizou. 

“A figura de Tarsila é inextricavelmente ligada ao projeto moderno brasileiro”, diz o historiador Luis Pérez-Oramas, que organizou a 30ª Bienal de São Paulo, em 2012. Oramas é responsável pela curadoria da exposição no MoMA em parceria com Stephanie D'Alessandro, ex-curadora de Arte Moderna Internacional do Art Institute of Chicago, onde a mostra da artista brasileira foi exibida no fim do ano passado.

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Stephanie sublinha a importância de Tarsila acrescentando que, sem os desenhos e pinturas dela, “o movimento cultural mais importante na história moderna brasileira teria tido um efeito muito diferente na produção artística nacional depois de 1920”. Cronológica e com abordagem temática, Tarsila do Amaral: Inventing Modern Art in Brazil exibe no MoMA cerca de 130 obras, incluindo pinturas, desenhos, cadernos, fotografias e documentos. A Negra (1923), Abaporu (1928) e Antropofagia (1929), três das principais obras da pintora paulista, formam o núcleo da exposição.

Tarsila do Amaral começou a forjar sua arte moderna quando, em 1923, vivia em Paris novamente, então na companhia de seu segundo marido, o escritor Oswald de Andrade. Ocupando o estúdio que teria sido de Paul Cèzanne, na Rua Hegesippe Moreau, ela servia caipirinha ao receber luminares como o compositor Erik Satie, o escritor e diretor de cinema Jean Cocteau, e o escultor Constantin Brancusi.

Convivendo com Matisse, Picasso, Georges Braque, Robert Delaunay e André Derain, que buscavam romper com a tradição da arte europeia, a artista brasileira também encontrou seu rumo para a arte de vanguarda na simplicidade primitiva que sobrevivia ao colonialismo europeu. Em carta aos seus pais escrita em 19 de abril de 1923 ela dizia: “Sinto-me cada vez mais brasileira, quero ser a pintora do meu país”.

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“O distanciamento oceânico, a viagem contrária à do descobrimento é um processo de redescobrimento da América que quase todos os intelectuais americanos têm experimentado. Tarsila descobriu o Brasil e também a negritude na França”, diz Oramas. A Negra, que foi pintada em Paris, é o começo de tudo na arte moderna de Tarsila. Segundo depoimento da própria artista, a imagem vem de histórias contadas na sua infância pelas mucamas das fazendas de café da família dela: como não podiam parar de trabalhar, as escravas amarravam pedras nos seios para alongá-los e jogá-los sobre os ombros a fim de amamentar os filhos que carregavam nas costas. 

Em 1924, levados pela ideia de um Brasil desconhecido, Tarsila e alguns amigos embarcaram numa viagem como a que fazem os estrangeiros chegando a um país pela primeira vez. Depois de visitar o Rio de Janeiro para conhecer o carnaval e passar por cidades antigas no sudeste de Minas Gerais, onde confrontou-se com a história do Brasil colonialista, ela começou a ver seu País com novos olhos. 

Quinze anos depois, a pintora escreveu sobre o que aquela incursão lhe provocou: “Em Minas, encontrei as cores que amava quando criança. Mais tarde, me ensinaram que eram feias e caipiras. Segui o tom do gosto refinado... Mas depois me vinguei daquela opressão, transferindo-as para as minhas telas”. De volta daquela viagem, trabalhando temas como o da aquarela Paisagem com Vagão de Trem e do óleo sobre tela Carnaval em Madureira, ambos de 1924, Tarsila abandona o padrão modernista europeu e acrescenta na sua pintura os rosas e turquesas das casas do interior do Brasil, a escultura barroca das cidades coloniais e motivos religiosos trazidos de fontes populares.

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Entre 1928 e 1929, Tarsila se concentrou em temas individuais, com contornos pesados e formas repetidas como os de Abaporu e Antropofagia, as duas pinturas que completam o núcleo da exposição. Abaporu, que a pintora via como um “monstro solitário” e deu de presente de aniversário a Oswald, embora seja uma figura sem boca, virou o símbolo do canibalismo cultural defendido pelo escritor no seu Manifesto Antropófago. Os três quadros, segundo Oramas, sintetizam “uma aposta em um mundo possível que a história só confirmaria algum tempo depois”.

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Por isso, Tarsila tem duas temporalidades na arte moderna brasileira. A primeira é a da criação de sua iconografia, da realização material da obra, da vinculação com intelectuais brasileiros modernos, do Grupo dos Cinco que ela formou com Anita Malfatti, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Menotti del Picchia para defender as ideias lançadas na Semana de 22. “Acontece que, por circunstâncias antropológicas ou sociológicas, a sociedade brasileira não estava pronta para a mensagem moderna em 1920”, observa Oramas.

Isso explica o atraso na recepção do trabalho de Tarsila no Brasil e sua assimilação tardia no final da década de 1960. Naquele momento, quando o tropicalismo canibalizava e deglutia outras culturas, a geração de artistas que começavam a criar o repertório da arte contemporânea brasileira — Hélio Oiticica e Lygia Clark nas artes plásticas, Zé Celso e Hélio Eichbauer com a montagem e a cenografia da peça teatral O Rei da Vela, escrita em 1933 por Oswald de Andrade, Caetano Veloso e Gilberto Gil na música, Glauber Rocha e Joaquim Pedro de Andrade no cinema — redescobre Tarsila e a mensagem de antropofagia cultural da década de 1920. Caetano Veloso, em entrevista a Augusto de Campos, reconheceu: “O tropicalismo é um neoantropofagismo”. “Esse olhar retrospectivo revelaria o significado reprimido de uma mensagem que esperava emergir desde que Tarsila concebeu seu canibal melancólico”, diz Oramas. Tarsila do Amaral: Inventing Modern Art in Brazil fica em exposição no MoMA até 3 de junho.

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