Talk shows, frutas e legumes

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Por Lúcia Guimarães
Atualização:

"Ninguém na TV faz o que você faz." A frase, dita por Marlon Brando em 1973, continua válida. Não houve e não haverá outro Dick Cavett. O melhor anfitrião de talk show da história da televisão continua magro e elegante, aos 72 anos. Continua, como disse para Brando, "humilhado quando me elogiam". Já testemunhei várias vezes seu embaraço em saguões de teatro, quando um espectador saudoso sacou o inevitável celular com câmera. Quem lê o blog intermitente de Cavett no New York Times recolhe pérolas do intelecto do homem que entrevistou uma galeria notável de personagens no emblemático período de 1968 a 1975 - Groucho Marx, John Lennon, George Harrison, Orson Welles, Janis Joplin, Truman Capote, Marlon Brando, Gore Vidal com Norman Mailer, Muhammad Ali com Joe Frazier - preciso continuar? Cancelado por falta de audiência, o talk show de Cavett teve duas encarnações posteriores, na TV pública e num canal a cabo. Mas os sete anos iniciais do Dick Cavett Show, uma boa parte disponível em DVDs e pirateada no YouTube, são uma triste lembrança da decadência não só do formato, como da arte de conversar. Cavett nasceu em Nebraska, em plena Grande Depressão, e foi parar em Yale com uma bolsa de estudos. Começou escrevendo comédias para Jack Paar e Johnny Carson. Sempre autodepreciativo, ele atribui a um bom agente ter conseguido seu primeiro show diário aos 31 anos. Mas o leitor que procurar o programa online vai entender que sorte não explica seu sucesso. Ao receber John Lennon e Yoko Ono, perguntou, casualmente: "Você faz piadas sobre Pearl Harbor com ela?" O comentário parece voar direto sobre a cabeça de Yoko. O programa com o casal Lennon é um enorme sucesso de vendas em DVD. E aumenta a minha admiração pela capacidade de Yoko Ono de continuar embromando multidões. Quando abre a boca no estúdio, ela pronuncia platitudes desconexas como "liberdade" e "utopia" como se tivesse sido programada por controle remoto. Groucho Marx fez mais de uma visita. Aos 81 anos, vira-se para Cavett, sério e lamenta não ter ido além da escola primária. Sofria de insegurança com erros gramaticais e considerou ter sido um dos primeiros colaboradores da New Yorker um triunfo maior do que o trabalho de comediante, no começo da carreira. Em outro episódio, o confronto sarcástico de Groucho com Truman Capote deixa Cavett nervoso, mas sem perder o controle daqueles preciosos minutos de televisão. No começo de um programa, Woody Allen derrubou a mesinha em frente das poltronas ao se sentar. Mas os dois, velhos amigos, se atiraram logo à esgrima surrealista. "Quero saber o que você tomou no café da manhã", Cavett oferece o mote. Allen começa com suco de laranja e dispara uma lista culinária e médica que leva a plateia às gargalhadas. A plateia do estúdio de Cavett foi banida pela imperiosa Katharine Hepburn, em sua primeira entrevista para a TV, exibida em várias partes. A atriz chega para gravar e sugere reorganizar a mobília do cenário, oferece ajuda aos carpinteiros e nos lembra quanto ela vivia Katharine Hepburn em papéis diferentes. Orson Welles vira a mesa metafórica, decide inverter os papéis. Em meio a baforadas do charuto, ele começa, com aquele vozeirão: "Posso entrevistar você?" Cavett, um notório reservado, depressivo bipolar que chegou a se tratar com eletrochoques nos anos 90, fica petrificado com o rumo da conversa, mas responde: "É assustador encontrar uma lenda viva; deve ser assustador para você também." Welles não recua. "Você senta aqui, noite após noite, embriagado de poder..." e continua a arrancar pequenas confissões sobre o breve passado de Cavett como ator. O apresentador sabe que o convidado assumiu a direção, não resiste e o resultado é um momento revelador sobre... Orson Welles. Cavett, como ele brinca ao final, continuará sendo um "pequeno enigma". Quando estreou na Broadway em 2001 no papel do Narrador, no musical Rocky Horror Show, Cavett deu uma entrevista de uma hora a Charlie Rose, epítome do anfitrião de talk show que não aprendeu os segredos de seu convidado. Faz perguntas longas, interrompe no momento errado e revela para a câmera aquele ar de satisfação consigo mesmo, que é um cacoete imperdoável em televisão. Naquela entrevista, Cavett comentou seu fascínio maior por personagens de cinema e teatro e confessou que ele também, como muitos fãs nova-iorquinos da época, foi espreitar Greta Garbo, que saía para caminhar diariamente de seu apartamento na Rua 52. Ao se ver diante de seu ídolo, Cavett passou alguns segundos em pânico. Garbo entrou numa delicatessen e ele foi atrás. Agarrou uma alcachofra e perguntou a ela: Isto é um abacate ou uma alcachofra? "Garbo riu" - Cavett se delicia ao relatar a memória - "e exclamou: alcachofra!" Cavett mora parte do tempo numa casa projetada por Stanford White no fim de uma estradinha na ponta de Long Island, à beira do oceano. Confesso que acabei de espiar o endereço no mapa do Google. Escrevo a 30 quilômetros de lá. Diante do meu ídolo, serei capaz de convencê-lo de que não sei distinguir uma fruta de um vegetal?

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