Stadt Luft

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Por Verissimo
Atualização:

Acima da porta principal de todas as prósperas cidades medievais que pertenciam à Liga Hanseática estava escrito: "Stadt Luft macht frei." Tradução aproximada: o ar da cidade liberta as pessoas. Uma epígrafe para estas histórias. 1 - O motoboy entregou o pacote de cartas e disse: - Ele falou que tinha resposta. - Espera - disse ela. E pôs-se a examinar as cartas. Procurava uma em especial, que não encontrou. Fez um sinal para o motoboy aguardar enquanto telefonava. - Alô... - Amauri, cadê a carta do ursinho? Era uma das primeiras cartas que ela tinha lhe mandado. Ainda eram namorados. Uma carta toda escrita como se fosse de uma criança para o seu ursinho de pelúcia. - Eu mandei. Não mandei? - Não. E se você não mandar a carta do ursinho eu não mando as suas. - Heleninha... - Não tem "Heleninha", Amauri. Ou você manda todas as minhas cartas ou eu começo a mostrar as suas. Sou capaz até de publicá-las. Quero ver como fica a sua reputação no meio. - Eu pensei em guardar pelo menos uma carta sua, Heleninha. - Logo a mais ridícula? Devolve a minha carta, Amauri. Nosso trato foi esse. Todas as cartas. - Tá bom. Manda o motoboy de volta. 2 - Zuneide pensou: não dá mais. Morar nesta cidade, não dá mais. Não vejo mais o Ique, não sei nada da vida dele. E todas as noites é este suplício, nunca sei se ele vai voltar pra casa ou não, se está vivo ou morto. Dizem que morre um motoboy por dia na cidade. Todos os dias uma mãe perde um filho nesta cidade. Se o Ique ainda fosse procurar outra coisa pra fazer. Mas não. Trata aquela moto como se fosse um bicho de estimação. À noite, a moto fica ao lado da cama dele. Dorme com ele. Vou tentar convencer o Ique a voltar para Sertãozinho. Respirar outros ares. Antes que ele morra e me deixe. 3 - Não dá mais, doutor Amauri. Esta cidade está me deixando maluco. Sabe que no outro dia , quando me dei conta, estava correndo pela calçada e buzinando? A pé, na calçada, e buzinando para os outros pedestres saírem da frente. Bi, bi, bi. Olha que loucura. - Você acha que isso pode ter alguma coisa a ver com os problemas em casa. Com a Mercedes? - Não sei. Ela também está enlouquecendo, doutor. Agora deu para dizer que se eu não comprar uma TV digital ela se mata. Vou dizer para ela vir consultar com o senhor tam... Tocou o telefone e Amauri pediu licença para atender. - Alô? Sim, Helena. Não chegou? Eu mandei pelo motoboy perto do meio-dia. Mandei, Helena. Por que eu iria mentir? Deve ter acontecido alguma coisa com o motoboy. 4 - Só em casa, depois do enterro, Zuneide descobriu a carta no bolso do blusão do filho. Uma carta carinhosa, que começava assim: "Querido Ursinho." Ele tinha uma namorada e ela não sabia! Heleninha. Uma boa menina, ingênua, pura, que obviamente o amava muito, a julgar pela carta. Pelo menos isso, pensou Zuleide. Pelo menos isso. Algumas coisas o ar da cidade não tinha corrompido.

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