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Sonhos possíveis, frágeis como cristal

Rosa de Vidro é uma recriação eficiente de À Margem da Vida que mantém o melhor do dramaturgo Tennessee Williams

Por Crítica Jefferson Del Rios
Atualização:

Já consagrado como autor teatral, Tennessee Williams usou discretamente seu dinheiro em um fundo para que a irmã Rose, deficiente mental, tivesse o melhor tratamento enquanto viva. Assumia abertamente a companheira fiel no difícil meio doméstico em que foram criados. Williams (1911-83) afirmou: ''Quase não preciso dizer que fui vítima de uma adolescência particularmente perturbada.'' Período que inclui uma doença grave, difteria com seqüelas e a excessiva atenção da mãe: ''Ela plantava em mim as qualidades típicas de um efeminado, para grande descontentamento do meu pai, um caráter rude e bruto.'' Nessas poucas linhas estão os alicerce do seu teatro. Provavelmente, é o mais amado dos grandes dramaturgos norte-americanos da linhagem que inclui Thorton Wilder, Elmer Rice, Eugene O''Neill, Arthur Miller e Edward Albee (com quem guarda semelhanças temáticas). O espetáculo Rosa de Vidro é a carinhosa revisão da peça À Margem da Vida. Possivelmente, a mais simples desse autor de tantas obras-primas, mas tão pungente, sobretudo quando se é jovem, que não por acaso Paulo Autran, nos seus 20, 21 anos, ao ser convidado para o teatro, em outro espetáculo, aceitou mas exigiu também fazer essa peça. Nela estão concentradas as premissas de toda temática de Williams: a solidão de quem se sente inadequado no ambiente que lhe é imposto, pessoas que não se adaptam a uma sociedade estruturalmente competitiva. O escritor, que cresceu no sul agrário dos Estados Unidos, compreende os nostálgicos de um mundo rural em declínio. Finalmente, e sobretudo, é o artista dos desejos eróticos reprimidos. Essa compaixão pelos desajustado está em Um Bonde Chamado Desejo, Gata em Teto de Zinco Quente, De Repente no Último Verão, Rosa Tatuada, Doce Pássaro de Juventude, A Noite do Iguana, e curtas peças sonhadoras de um ato. No centro de Rosa de Vidro/À Margem (o título original The Glass Menagerie esfria na tradução) estão duas personagens fundamentais para o autor: a mãe, Amanda, e a irmã, Laura. O próprio dramaturgo é visível no comerciário poeta Tom, que tem um amigo, Jim, de temperamento diferente, mas seu cúmplice no trabalho rotineiro da loja de calçados. Tom quer abandonar a casa, a cidade e sobretudo a vida cinzenta de empregado. Jim, ao contrário, é o americano médio, a maioria silenciosa, prático e com a vida definida. O extremo dramático da peça está na aflição descontrolada da mãe em fazer casar a filha sem atrativos e doente. No original, a moça tem um pequeno defeito físico, mas o diretor Ruy Cortez, com sutileza, transforma Laura em Rose, a irmã real e psicologicamente lesada de Tennessee Williams. A Rose suave que faz enfeites de vidro e tem absoluta devoção ao irmão. Um desastrado jantar inventado pela mãe reúne todos numa sucessão de penosos equívocos. Cortez, que está construindo uma carreira sólida em várias áreas do teatro, reuniu um elenco cristalino. Vitória Camargo impõe a mãe no limite da tragédia. É uma atriz de forte presença, que valoriza as pausas, o silêncio, em meio a explosões de desespero. Tales Penteado (Tom) é tranqüilo e sincero (será bom trabalhar o leve sotaque ítalo-paulistano, que não é lá bonito). Encarna um Tom que se asfixia no marasmo. Ricardo Gelli tem habilidade na simpatia meio rústica, meio desarmada do visitante que não se imagina o agente de involuntária crueldade. Júlia Bobrow é uma atriz nova, entregue ao seu segundo papel. Tem acertos encantadores e momentos inseguros, naturais numa iniciante diante de um papel complexo. Rosa de Vidro convence porque o diretor teve a maturidade de escapar dos grandes efeitos. O seu trabalho lembra a intencional versão enxuta, em preto-e-branco, que Paul Newman dirigiu, em 1987, com Joanne Woodward, um excelente John Malkovich em início da consagração, Karen Allen e James Naughton. É o caso típico de recomendar o filme (vídeo), mas só depois de se assistir a Rosa de Vidro. Serviço Rosa de Vidro. 75 min. 14 anos. Espaço dos Satyros Um (80 lugs.). Praça Roosevelt, 214, Consolação, 3258-6345. 4.ª, 21 h. R$ 20. Até 2/7

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