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''Somos besteirologistas''

É com riso 'de qualidade' que os Doutores da Alegria transformam a vida de crianças há 17 anos

Por Sonia Racy
Atualização:

Foi no escritório dos Doutores da Alegria, em São Paulo, que Wellington Nogueira me recebeu para a entrevista. Ele se define, rindo, como um "sincrético por natureza" e "besteirologista fundador". Há 17 anos, começou a freqüentar hospitais, interagindo com crianças doentes e profissionais de saúde a partir de um método que adapta técnicas teatrais para o cenário hospitalar: a "besteirologia". Leve, com um sorriso nos lábios, mesmo quando aprofunda o conceito do que faz, ele diz - como a justificar o trabalho detalhado, cuidadoso -, que "o Doutores da Alegria são palhaços existenciais, cheios de questões filosóficas". Contador de histórias sem defesas, palhaço sem máscara, Wellington tomou contato com a atividade, pela primeira vez, na década de 80, em Nova York. De lá para cá, foram vários desafios vencidos. O principal deles, a conquista da confiança de médicos, pais e patrocinadores. "A equipe é extremamente profissional. Todos os nossos atores têm atuações consistentes no cenário teatral." Persistente e obstinado, lembra para nós todos : "O mundo está doente e não temos besteirologistas suficientes, por isso é necessário uma reflexão sobre nossas posturas internas." É difícil hoje em dia coordenar uma ONG do tamanho dos Doutores da Alegria? Ela é mais viável hoje do que quando você começou? É um trabalho sempre desafiador, mas, no início, havia uma ignorância completa. Tive de introjetar o conceito. Costumo brincar que o nome do trabalho podia ser Doutores da Alegria, mas eu me sentia no "Doutores da Agonia". Hoje, cultivamos a cultura da transparência e da regularização. Temos um programa chamado "Que palhaçada é essa?" que é uma prestação de contas públicas. O problema é que à medida que a ONG cresce, esbarra em algumas burocracias. E como encarar a burocracia, sendo artista? Procuramos nos focar no mais fascinante que é nosso trabalho no desenvolvimento humano. Essa é a base para criar novos modelos de gestão. É preciso apagar a linha entre segundo e terceiro setor. Criar condição de ter organizações mais orgânicas, com uma visão abrangente sobre as relações de trabalho. O importante é ter organização, competência e profissionalismo. Como é a equipe do Doutores da Alegria hoje? Como é o seu método de trabalho? No começo, era mais uma "euquipe" (risos), uma ING - Indivíduo Não Governamental. Hoje, somos 58 palhaços, mais 23 pessoas na administração, com atuação em quatro cidades: São Paulo, Rio, Recife e Belo Horizonte. Todos atores profissionais, que passam por um processo seletivo e recebem um ano de treinamento para adaptar as técnicas ao hospital. É isso que eu chamo de "besteirologia". É difícil essa transposição, do palco para o hospital? Fui fazer teatro pelo grande risco do "ao vivo". No Doutores, atuamos em contato direto com a vida real e essa dimensão do "ao vivo" fica infinitamente mais forte e contundente. A vida real é a grande mídia para esse artista interferir. O encontro com cada criança é um espetáculo com começo, meio e fim, escrito a quatro mãos, em tempo real, pela platéia e pelo artista. Isso para mim é uma revolução nos paradigmas das artes cênicas. E isso enriquece o artista, certo? Depois de encarar uma UTI, voltar para o palco é uma delícia, você celebra a sua vitalidade, a platéia. Isso nos torna mais generosos e disponíveis para o público. Hoje existem várias ONGs fazendo trabalho semelhante ao dos Doutores. Pode-se falar em competição? Não queremos ser donos do modelo. Queremos ser "molding", para que se faça um download de ótimos palhaços, de ótimos besteirologistas. Ter isso como perspectiva é muito bacana. Aí penso: com o que competimos, com o cidadão que tenta fazer um trabalho de palhaço no hospital ou com a falta de treinamento? A competição não é com o programa semelhante, mas com a ignorância. É muito mais interessante fazer um trabalho para erradicar a ignorância. Trazer consciência sobre a alegria e todo o potencial que ela tem. Para entrar no hospital o ator tem de deixar de lado a vaidade... No hospital, começamos a pôr as coisas em perspectiva. A vaidade é um anteparo para a insegurança. Cada vez que estou na porta do quarto, encarando uma criança, penso: vamos escrever uma história. E isso me leva a um outro tipo de conduta, a uma outra qualidade de relação. Às vezes, tenho a sensação de que nosso trabalho está começando agora, depois de 17 anos de conhecimento e experiência. E como é a experiência de levar o riso a um ambiente tão hostil e triste? No hospital, ninguém é louco de negar a doença, mas ninguém é louco de negar que enquanto há vida, existe a oportunidade da experiência da alegria que, sendo genuína, tem poder transformador. Você acredita em qualidade do riso? Uma das características mais fascinantes do palhaço é o fato de termos o corpo de adulto e nos relacionarmos com o mundo com a cabeça de uma criança. É um tipo de "bobice" simples e deliciosa. Hoje estamos formando jovens palhaços. E eu percebo que é um processo sobre o "desaprender". Desaprender tudo o que se sabe para ser um adulto bem-sucedido e estimular o lado criança. O palhaço quebra a cara, pode não dar certo. Está na frente do mestre que é a criança. E ela não é condescendente. Se não for bom, ela vai ver televisão. E o nariz de palhaço, é realmente uma máscara? A Soraya Said, nossa doutora, tem uma fala maravilhosa no nosso filme. Diz que o nariz do palhaço é a menor máscara do mundo porque oculta um nariz para revelar um ser humano. E eu compartilho desse olhar. Mesmo pequena, o mais importante é habitar essa máscara e levar uma existência. O que é um bom palhaço? O palhaço é como o curinga num jogo de cartas. Pode assumir qualquer lugar, qualquer valor. E quando ele cumpre sua missão, vai para outro lugar. Não podemos ter rabo preso com nada, esse é o desafio. Depois de vivenciar experiências difíceis, como fica a questão da espiritualidade? Eu sou um palhaço existencial. Não há como olhar a vida da mesma forma. No hospital, o mínimo de vida que existe todo mundo luta para manter. Aqui fora, há uma abundância que é desperdiçada, mal-usada. Então é bom falar sobre integridade do ser humano. No filme da ONG, a sensação é de que os Doutores da Alegria são anjos entrando nos hospitais. Quando comecei a trabalhar aqui, no Brasil, um médico me disse: "Acredito que vocês não tenham dimensão do invisível, mas vocês são o invisível." Foi muito marcante. Tem uma atriz nossa que diz que é difícil se conformar ao ver uma criança doente. É como um anjo torto. O palhaço também é um anjo torto e é por isso que eles se olham de igual para igual. Os Doutores pensam em atuar em outras áreas também? O mundo está doente e como não existe besteirologistas suficientes para todos, vamos ampliar o alcance, disseminar nossa experiência. O desafio é como fazer isso. Então há novos projetos? Gradualmente nosso objetivo é criar um modelo, para transformar a besteirologia em profissão de futuro (risos). Nós somos um porto e o artista um barco. Enquanto a relação for plena, ele está atracado. Temos projetos de formação de palhaços, cursos livres, tudo sem contra-indicação (risos). O próximo é "Palhaços para curiosos". Na seqüência, vamos investir no acervo, na documentação. Além de uma escola, planejamos a construção de um centro cultural voltado para a cultura do palhaço. Um ponto de descompressão no meio da paisagem urbana.

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