PUBLICIDADE

Sofisticado passeio pelas ansiedades do século 20

Coletânea revela ensaísta generoso que não se impõe ao leitor

Por Vinicius Jatobá
Atualização:

Poucos escritores provocaram uma reação crítica tão inteligente quanto Kafka: Pietro Citati e Roberto Calasso, Jorge Luis Borges e Ricardo Piglia, Milan Kundera e Danilo Kis, Elias Canetti e Günther Anders, Hanns Zischler e WG Sebald (entre tantos). É espantosa a qualidade dos comentários que a sua obra recebe ao longo das décadas. Kafka é um afortunado. Tem encontrado interlocutores sofisticados que não apenas mantêm sua obra viva no imaginário intelectual, como impulsionam o público geral a buscar suas narrativas. Em alguns casos, como em Kafka Vai ao Cinema (Zischler) e O Outro Processo (Canetti), os livros críticos são tão impressionantes que eles mesmos causam genuíno prazer estético. Modesto Carone não tem motivo para modéstia. Não apenas recolocou um Kafka cristalino em circulação nessa última década com suas traduções, como se tornou a maior autoridade do autor no País, mostrando erudição e elegância tanto nos posfácios que acompanham os volumes traduzidos como em artigos acadêmicos e resenhas. O Kafka dessa geração é o reimaginado em português por Carone. No entanto, e apesar de toda essa notoriedade, o que mais chama atenção ao final da leitura de Lição de Kafka, coletânea de ensaios que publica agora, é sua profunda humildade e gratidão diante do autor checo. Após décadas se debruçando sobre seu legado, Carone se expressa num tom de câmara. Lendo seus ensaios, mesmo quando fala da própria experiência de tradutor, Carone não se coloca entre o leitor e Kafka. Há três vertentes no livro que se interpenetram. A primeira, a tentativa de compreensão da prosa de Kafka, de como ele avançou estilisticamente até encontrar a sua prosa protocolar. Para o Carone tradutor essa questão é essencial. Há alguns momentos em que ele descreve diretamente essa sua experiência e demonstra que o mais importante é o estudo do contexto que provocou aquela escrita e estilo. Traduzir, de certa forma, é recontextualizar; a palavra exata, que capta a essência do original, é mais consequência de um processo de estudo cultural: quanto mais se entende o ponto de partida do escritor mais legível se torna o texto traduzido. A segunda questão é editorial. Algumas vezes, Carone tem que interromper a escrita para se debruçar sobre a caótica história editorial de Kafka, já que a maior parte de sua obra só foi publicada postumamente. O que fascina Carone é o fragmento, a interrupção; e, consequentemente, os abandonos dos manuscritos gigantescos de O Processo e O Castelo. É aqui que entra o Carone ficcionista, porque nesse ponto o trabalho de interpretação age sobre um espaço vazio preenchido imaginariamente por trechos de cartas, diários e aforismos e suposições biográficas. Não por acaso Kafka tem atraído tantos críticos-escritores; há uma essência lacunar em Kafka que se revela muito rica para o exercício especulativo porque, pela sua história editorial, se tornou um escritor sem corpo: uma voz interrompida pairando sobre o imaginário. Carone faz um esforço criativo de conjurá-lo a partir de textos indiretos, e seu Kafka se revela um personagem rico em contradições. Chega-se, então, à terceira questão: a história das leituras de Kafka. Carone é muito sensível a como Kafka foi lido ao longo das décadas, e a forma com que foi apropriado diz muito daquilo que cada cultura esperava naquele momento. Como se Kafka fosse uma espécie de radiografia a partir da qual se podem entender as ansiedades culturais. Não há escola de pensamento que não tenha se apropriado de Kafka e Carone levanta o que incomodava a intelectualidade nessas apropriações e como a sua leitura mudava de acordo com essas diversas posições. Lição de Kafka é um passeio, dessa forma, ao longo das ansiedades e dos desejos do século 20. E o leitor sai dessa conversa com Carone - há uma qualidade vernacular na prosa do grande acadêmico - com o desejo de revisitar também a geografia que estabeleceu com suas leituras de Kafka, assim como de dar nova oportunidade aos livros abandonados ou jamais devidamente enfrentados. É a reação que se espera de um livro de crítica; e é o que Modesto Carone provoca com zelo de mestre. Vinicius Jatobá é crítico literário

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.