Sob a batuta do tempo

Em O Resto É Ruído, o crítico Alex Ross questiona ideia de que a música clássica viveu alheia às principais questões do século 20

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Por João Luiz Sampaio
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"O jovem Adolf Hitler compareceu à estreia austríaca da obra." A informação, na nota de rodapé de um volume publicado no fim dos anos 80 sobre Salomé, ópera de Richard Strauss baseada na peça de Oscar Wilde, tinha tudo para passar despercebida. Mas, para Alex Ross, então na universidade, foi como uma revelação. E se pensássemos a música produzida no século 20 em conjunto com o contexto político e social? Surgia ali a ideia para O Resto É Ruído, livro do agora crítico musical da revista New Yorker, que chega às livrarias brasileiras nesta semana após causar polêmicas nos Estados Unidos e na Europa com sua tese principal: a música clássica, em que pese a perda de público das últimas décadas, jamais esteve alheia às principais questões do século 20. Mais do que isso: é porta de entrada privilegiada para que se compreenda o período. "Compositores são relevantes", brinca ele, em entrevista ao Estado, definindo aquele que seria o fio condutor das quase 700 páginas de seu livro, lançado no Brasil pela Companhia das Letras. A noção vai contra o senso comum ou mesmo o pensamento de alguns intelectuais, como o palestino Edward Said, principal teórico da ideia de que a música clássica, ao se voltar à experimentação por si mesma, perdeu sua relevância social. "Tendo os compositores se infiltrado em todas os aspectos da existência moderna, sua obra só pode ser retratada na maior tela possível", defende Ross. "Por isso, O Resto É Ruído não trata apenas dos artistas, mas também dos políticos, ditadores, mecenas milionários e diretores de empresa que tentaram determinar que música seria escrita; das tecnologias que mudaram o modo de fazer e ouvir música; ou então das guerras quentes e frias, levas migratórias e profundas transformações sociais que alteraram a paisagem onde trabalhavam os autores." Ross mostra, por exemplo, como a escrita de Strauss em Salomé está diretamente ligada às novas ideias sobre sexualidade na Viena de Freud; na capital austríaca, a presença de Trotski nas primeiras décadas do século 20 e a crescente oposição entre burguesia e vanguarda levariam a uma sensação de catástrofe iminente, de fim de um sistema estabelecido de valores, o que, na música de Arnold Schoenberg, significaria a quebra da hegemonia do sistema tonal. Na mesma época, em Paris, o russo Igor Stravinsky criava o balé A Sagração da Primavera (1913), tirando da música o status de "teatro da mente" consagrado pelo Romantismo e introduzindo o conceito de "música do corpo", quase ritualística, que bebia nas "nascentes das montanhas", e não na "pretensamente sofisticada" vida urbana. Com a 1ª Guerra, os franceses, imbuídos de certo espírito nacionalista, defenderiam o rompimento com o cânone musical, leia-se "a tradição germânica". Já com a 2ª Guerra, música virou propaganda. Na União Soviética, Stalin elegia os artistas como delegados responsáveis por transmitir a mensagem de que "a vida está ficando melhor". Nos Estados Unidos de Roosevelt, o New Deal jogava quantias jamais imaginadas de dinheiro nas artes, levando o maestro da Sinfônica de Boston, Sergei Koussevitzky, a afirmar que "o próximo Beethoven viria do Colorado"; Georges Gershwin acabaria recriando a música popular no palco de ópera; e Aaron Copland, aos poucos, abandonaria as ligações com o Partido Comunista, entrando na dança da busca por uma identidade cultural norte-americana. Logo chegariam os anos 60. Na Europa, a música do alemão Karlheinz Stockhausen pregaria a liberação definitiva das amarras da traição - e também dos sentidos, dos amores, das paixões. O mesmo faria, nos EUA, o maestro e compositor Leonard Bernstein, mas como uma espécie de espelho artístico do presidente John F. Kennedy, carismático, capaz de articular para as câmeras um discurso repleto de referências à vanguarda e, como autor, aproximar-se da música popular como fonte principal de inspiração. A lista é longa e há ainda meio século a ser discutido. O apresentado até aqui, no entanto, já é suficiente para que se pergunte a Ross: se a música manteve diálogo tão próximo com a sociedade, por que então se afastou do público e perdeu a relevância nos debates culturais, como quer Said? "Não há apenas uma resposta", ele começa. "Por um lado, o surgimento da gravação redefiniu o papel da música clássica na vida das pessoas. Até o fim do século 19, os clássicos eram os únicos autores que conseguiam editar suas obras, consumidas no dia a dia das famílias. Com a possibilidade de registrar em áudio as obras, perdeu-se essa hegemonia e também a cultura popular passou a frequentar os lares. É fato que, com isso, surgiu toda uma fortuna crítica que antes era destinada apenas aos clássicos." Em outras palavras, um novo disco com canções de Bob Dylan é analisado como se poderia analisar um novo caderno de canções de Schumann - e a música clássica, então, deixaria de ser representante exclusiva de uma forma de arte sofisticada, com artistas populares suprindo essa "necessidade social". "Mas é preciso ir além. O que houve com a cultura musical foi uma desintegração em uma série de culturas e subculturas, cada uma com cânone e jargões próprios", diz o autor. Os clássicos, portanto, deixaram de ser hegemônicos - viraram alternativos. Mas não perderam sua relevância. Um exemplo seria a obra do norte-americano John Adams, que trata de questões contemporâneas, como a criação da bomba atômica, levando, dessa maneira, à busca de uma nova estética de composição em acordo com essa temática. QUEM É O AUTOR Alex Ross nasceu em 1968, em Washington. No fim dos anos 1980, em Harvard, estudou com o compositor Peter Lieberson e fez seu doutorado sobre a obra do escritor irlandês James Joyce. De 1992 a 1996, foi crítico do New York Times; em seguida, assumiu o posto na revista New Yorker. Já colaborou com publicações como The New Republic, Slate e London Review of Books. Mantém o blog www.therestisnoise.com e atualmente prepara dois livros. O primeiro é uma coletânea de textos sobre música popular; o segundo, Wagnerism, trata da influência da música de Richard Wagner na segunda metade do século 20.

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