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Sob a bandeira da liberdade

Encenação depurada, Fragmentos, de Beckett, mostra a imaginação criadora do diretor Peter Brook

Por Crítica Mariangela Alves de Lima
Atualização:

Alinhadas por ordem cronológica, as peças de Samuel Beckett invadem progressivamente os domínios tradicionais do ator, do diretor, do cenógrafo e, de um modo geral, das áreas de criação que, de hábito, se harmonizam para compor o espetáculo. Falas pontuadas de modo tão preciso, que orientam a inflexão e o tempo de emissão das sílabas e a duração dos intervalos entre as palavras, são constitutivas do sentido das peças. Se contrariadas as indicações das rubricas, alteram-se os significados dos textos. Com igual determinação, Beckett controla os objetos de cena, as dimensões espaciais e, por vezes, a intensidade e a duração dos focos de luz. Quanto aos movimentos, dos passos à interação física entre personagens ou entre a ambientação e os atores, há um controle minucioso de coordenadas, metragem e velocidade. E é por esse dramaturgo de afirmações tão incisivas que se interessa, neste momento, um diretor cuja longa e prestigiada carreira artística se desenvolveu sob a bandeira diáfana da liberdade e da experimentação. Fragmentos, espetáculo que Peter Brook dirige, reúne quatro textos curtos, pautados por tantas recomendações precisas sobre o modo de encenar que, pelo menos aparentemente, não resta sequer uma estreita margem para contribuições pessoais do diretor ao resultado final do espetáculo. Pois é o que interessa neste momento. Esse baixo relevo intencional da função do artista, a quem cabe intermediar a passagem do texto ao palco, tem sido a marca dos trabalhos apresentados entre nós pelo Théâtre des Bouffes du Nord, trupe internacional sediadas em Paris e orientada por Brook. De uma direção de forte marca autoral, que se exercia sobre os clássicos e sobre textos criados especialmente para os grupos de trabalho que orientava, o encenador inglês tem feito uma espécie de regresso histórico ao tipo de teatro em que a presença do diretor se atenua para ceder o protagonismo a outros elementos do espetáculo. No caso de Fragmentos é o universo do dramaturgo, rigoroso no intuito de manter a autoridade sobre o palco, que deve prevalecer na organização do espetáculo. Não há, portanto, surpresa ou novidade no tratamento da situação e das duas personagens da primeira narrativa. A aproximação entre o homem aleijado e o cego se processa exatamente de acordo com orientações espaciais e temporais da peça Fragmentos, na qual as instruções se destinam a retardar e a frustrar o contato e a complementaridade entre dois seres falhos. Tal como as outras parcerias beckettianas, que, por sua vez, seguem a tradição das duplas cômicas do music-hall, esses dois párias se contrastam: um é esperto, o outro ingênuo, um irritadiço e o outro bonachão e assim por diante. É através das brechas estreitas da partitura cênica que a direção insinua uma nota de comiseração pela vontade, ainda que destinada ao fracasso, de uma conjunção solidária entre criaturas desamparadas. Variando do tom metálico ao queixume, as inflexões do paralítico conservam o tom inquisitivo da procura, de uma atividade psíquica que ainda não se resignou de todo à impotência. Ao seu companheiro de cena, desprovido de motivação para o contato, cabem os movimentos reativos a uma coreografia que, embora nada tenha de graciosa, é desenhada com alguma delicadeza para tornar momentaneamente gratificante o instante da proximidade física. Essas duas personalidades ficcionais se prolongam no mimodrama em que se alternam a repulsa pela vida e a mera fruição, atitudes opostas diante do ciclo repetitivo dos dias. É verdade que o ponteiro que incita as personagens para que saiam do invólucro e enfrentem um novo dia não se movimenta no sentido horizontal, com quer o texto. Descontada essa heresia, as ações são executadas do modo mais aproximado possível das orientações do autor. Nesse caso, o trabalho do diretor é, sobretudo, o de reger os tempos e fixar o contorno de gestos repetitivos para que a prece e a toalete tenham exatamente o mesmo peso dramático. Brook reconhece e valoriza nesse tipo de peça a função de exemplaridade. Não é a mesma exigência de um texto como Rockaby (Cadeira de Balanço) em que há um movimento intelectual no discurso proferido pela mulher que renunciou (ou perdeu) a noção da primeira pessoa do singular. Distanciada da própria experiência por essa obliteração da subjetividade, e sem a possibilidade de interlocução, a personagem se resume à fala. A difícil tarefa da atriz é manter a neutralidade enquanto impulsiona o movimento do seu posto de observação. Nesta encenação, a mulher ter vigor físico surpreendente e não parece exasperada ou ausente. É neutra, mas ainda ativa porque faz balançar uma cadeira sem arco e mantém o equilíbrio. É ainda agente de uma fala, mesmo que se trate de uma comunicação intransitiva. Enuncia é o seu trunfo vital e talvez possa ocupar o lugar do sentido fugidio. Come An Go (traduzido pela ensaísta Célia Berrettini por Vaivém) finaliza o espetáculo com a forma delicada da ciranda. Neste caso, a imaginação criadora de Peter Brook detecta nas entrelinhas do texto e traz à superfície do espetáculo a ironia e a graça de um contato que se resume e satisfaz com o atrito da proximidade. Nenhum superlativo serviria bem a essa encenação depurada de todos os excessos, inclusive dessa dor funda e abissal que é o desespero. Decantados, reduzidos ao mínimo, esses textos enfeixados sob o rótulo de Fragmentos se somam em um conjunto íntegro em que os motivos da solidão, da falta, da imobilidade e da repetição se impõem com clareza inegável. No entanto, nessa perspectiva, a última imagem não é a da agitação no vazio, mas a das três mulheres cujas mãos se enlaçam. Apesar de tudo, vive-se. É assim.

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