Só faltava essa

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Por Marcelo Rubens Paiva
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Nos anos 80, quando parti para a tímida aventura de lançar livros em cidades em que não conhecia ninguém, bolei uma técnica para arrumar programa depois dos autógrafos: identificar os doidões da fila. Em Curitiba, apareceu Carrano com cara, jeito, roupa e cabelo de doidão. Me falaram que a capital paranaense tinha cinco doidões. Era a turma dele. Conheci a cidade com e por eles. Carrano me deu o manuscrito do seu primeiro livro, Canto dos Malditos. Disse que se inspirou em Feliz Ano Velho. Li numa tacada. Narra uma história de tirar o fôlego: garoto de 17 anos é internado, pois o pai encontra maconha na jaqueta, e durante os três anos em clínicas psiquiátricas leva sessões de eletrochoques aplicados a seco (voltagem de 180 a 460 volts). Foi dopado e ''institucionalizado'', como diz o jargão. Em 1996, a cineasta Laís Bodanzky me convidou para escrever o roteiro baseado num livro então desconhecido: Canto dos Malditos. Ficou surpresa quando eu disse que conhecia o autor. Reencontrei um outro Carrano - maduro, morando em São Paulo, militando no movimento antimanicomial. Relutava em vender os direitos de adaptação. Não conhecia Laís, cujo currículo indicava ser diretora de um excelente curta (Cartão Vermelho). Passei a tarde convencendo-o a filmar. Negociamos os direitos para um filme de baixo orçamento. Firmamos o cachê. Tomamos um porre para comemorar. Vivi sua história linha por linha. Fiz os dois primeiros tratamentos do roteiro. Saí do projeto e entrou Luiz Bolognesi. O resto você sabe. Resultou no premiado Bicho de Sete Cabeças. Poderia ser a redenção de quem viveu o inferno na adolescência. No entanto, o livro reeditado foi embargado por familiares do psiquiatra responsável pela internação. Só em 2003, foi liberado. Como se não bastasse, Carrano é processado por calúnia e condenado a pagar indenização. ''Estou condenado a indenizar meus torturadores.'' Escreveu: ''Somos currados em todos os direitos, pela omissão social e desleixos profissionais, que nos usam como cobaias humanas em suas prisões intituladas instituições psiquiátricas. Nos tiram a razão, nos transformam em bestas humanas, onde não sabemos mais quem e o que somos, na forma de uma dupla prisão: física e química.'' ''O que esta sociedade omissa permite fazer? Condenam o escritor e ex-paciente psiquiátrico a ser condenado mais uma vez. Estou condenado a pagar 60 mil reais aos meus torturadores, nunca tive tamanha quantia de dinheiro, mas eles querem essa indenização estipulada pelo Tribunal de Justiça do Paraná, pois são intocáveis e isentos de dúvidas sobre qualquer ação.'' Reencontrei-o há um mês na Vila Madalena. Não reconheci. Magro, mas com o mesmo sorriso, contou que combatia um câncer no fígado. Austregésilo Carrano Bueno morreu terça-feira, 27 de maio, aos 51 anos. Que dívida temos com ele... Matéria de encerramento do Fantástico do último domingo, sobre o Rock in Rio Lisboa. Sônia Bridi mostra o ritual nos camarins de Ivete Sangalo, a reza da banda, a entrada no palco e trechos do show. Ela canta Sorte Grande (Poeira) e a lambada Chorando Se Foi com uma roupa que lembra a Mulher Gato. Será que cantou Macarena? ''Ivete nocauteou o público português, que mostrou sua paixão'', conta Sônia. Close num cartaz ''Ivete casa comigo''. Em seguida, a estrela da noite, Amy Winehouse, linda, doida, puro rock and roll! Que ''decepcionou'', segundo o Fantástico, pois apareceu rouca, cambaleante e com um copo na mão. O show começou com meia hora de atraso. Ela veio de Londres num jato fretado, não deu entrevistas e usava um broche com o nome do namorado que tem problemas com a Justiça, informou Sônia, desapontada, que concluiu: ''A fila anda.'' Ela sugere que Ivete irá substituir Amy? Xenofobia no rock? Aliás, Ivete anunciar cerveja pode? E aonde foi parar o rock and roll? Por muito menos o movimento punk nasceu. Roberto Medina, vice-presidente da organização, diz que o Rock in Rio pode voltar ao Brasil no ano da Copa do Mundo. Pedem para ele trazer o rock. E a Amy. O filme Meu Nome Não É Johnny já estava na web quando foi lançado nos cinemas. Não tem jeito: a pirataria venceu a guerra. Cineastas não conseguem impedir o livre trânsito dos seus filmes. A operação para baixar e legendar um longa ainda requer tempo e boa conexão. Os músicos já se acostumaram com a pirataria na rede. Alguns se conformaram. Muitos encontram formas de faturar. Começam a utilizar a internet para difundir músicas em sites como MySpace. A maioria aceita trocar o papel de reclamão para o de provedor de conteúdo. Viver de direitos autorais está difícil. Não é por saudades da convivência que The Police e Led Zeppelin voltaram. Com a queda de venda discos, precisam de shows para manter o padrão de vida. Radiohead sugere ao internauta que pague quanto quer pelo download do disco novo. Leo Jaime tentou fazer o mesmo com Interlúdio, disco que sai nesta semana. Mas no Brasil ainda é ''tecnologicamente complicado'', lhe disseram provedores e gravadoras. Bandas brasileiras, como Mombojó, disponibilizam seus discos gratuitamente em sites próprios. Grupos teatrais postam trechos de espetáculos no YouTube. A ''nova mídia'' se mostra eficiente. A produção de Camino Real notou que aumentou o borderô, depois que postou imagens da peça. Nós, do mercado literário, estávamos livres de parte dos dilemas que a revolução digital impõe, já que o e-book não decolou. Vivi agora a experiência de ser pirateado. Um maluco se deu o trabalho de scannear meu livro Blecaute página por página e disponibilizá-lo em pdf num site israelense. Fui rápido e denunciei por e-mail. Em uma semana retiraram o arquivo da rede. O site tem bom senso e controla as violações de direitos autorais. Só faltava essa. Já é uma guerra viver de literatura no Brasil, ainda vem um doido e passa horas copiando um livro, para postar na web. A sorte de quem não quer oferecer a sua obra na internet é que se gasta mais com tinta e papel, para imprimir um livro, do que na livraria. Até surgir a geração que conseguirá ler 200 páginas numa tela LCD.

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