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Sismógrafos da crueldade da guerra

Obra de Rodric Braithwaite e reportagens de Martha Gellhorn relatam os dramas das vítimas de conflitos bélicos no século 20

Por Elias Thomé Saliba
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Ielena Volkova começou a receber treinamento para enfermeira militar aos 14 anos. Quando completou 17, em 1941, exércitos alemães invadiram a Rússia e ela foi servir num trem-hospital, onde permaneceu até o fim da guerra, sendo condecorada por resgatar dezenas de soldados feridos. Seu pai foi enforcado por tropas alemãs e sua mãe morreu de desgosto em 1942. Lev Mischenko não tinha um futuro promissor: seu avô ucraniano se opusera ao regime czarista e seus pais foram fuzilados pelo Exército Vermelho em 1918. Em 1941, estudante de física na Universidade de Moscou, alistou-se como voluntário, foi ferido em combate e atuou na divisão de suprimentos até o fim da guerra. Nikolai Glebov trabalhou como operário na construção do metrô de Moscou até 1941, quando foi enviado para Kuibichev, com alguns colegas, para construir um bunker para o refúgio de Stalin, em caso de derrota. Stalin nunca usou o abrigo, Glebov sobreviveu à guerra, aposentou-se do metrô em 1965 e em 1970 chegou a visitar o bunker - então transformado em atração turística. As histórias de Ielena, Lev e Nikolai são algumas dentre as centenas recuperadas por Rodric Braithwaite em Moscou, 1941 - traduzido por Vítor Paolozzi -, relato detalhado do cotidiano da Rússia no ano da maior batalha da 2ª Guerra Mundial. No espantoso ranking de mortos e feridos, a Batalha de Moscou - entre setembro de 1941 e abril de 1942 - foi o maior dos confrontos bélicos do Ocidente. Na extensa bibliografia de história militar, até agora ninguém havia falado da sangrenta batalha a partir das perspectivas das pessoas comuns, que viveram a época. Braithwaite juntou sua longa experiência como diplomata e historiador para realizar uma pesquisa extensa: reuniu testemunhos orais e escritos de 77 pessoas, incluindo diários e memórias não-publicadas, cópias de mais de 30 filmes soviéticos, emissões radiofônicas gravadas e um colosso de material bibliográfico. O resultado é uma narrativa com os dramas individuais de estudantes, enfermeiras, funcionários, soldados, operários e artistas. Por que o povo russo acabou se engajando na guerra por um regime truculento que havia imposto tantas privações e assassinatos brutais? Braithwaite documenta de forma sutil como esse engajamento veio aos poucos, com a crescente percepção coletiva de que a dominação alemã seria bem pior do que o regime stalinista. O momento crítico ocorre no fim de junho de 1941, quando os alemães se aproximam de Moscou; abre-se uma crise no Estado Maior soviético: Stalin, temendo um golpe, se retira para a sua Dacha, onde permanece isolado por quase 48 horas. Mas o golpe não ocorre e Stalin volta com força maior. A situação se complica mais em setembro, quando corre o boato de que os alemães teriam programado um desfile de suas tropas em Moscou no mês de comemoração do aniversário da revolução. Documentos são queimados, o corpo de Lenin é transferido para Tiumen, na Sibéria, mais de 500 fábricas são transferidas e 2 milhões de pessoas são removidas da capital. Além da brutalidade real, que produzia a paralisia coletiva, uma das características mais sombrias do stalinismo foi de poder determinar, aos vivos, as memórias permitidas - e, aos mortos, qual a dose possível de esquecimento. A motivação para a resistência veio das notícias dos massacres perpetrados pelos alemães, dos discursos e hinos patrióticos emitidos pela rádio e da velocidade demoníaca de Stalin e seu Estado-Maior. Stalin raramente discursava, já que o russo comum achava o seu forte sotaque georgiano um tanto cômico - em seu lugar, falava Molotov e, não raro, Iuri Levitan, o mais famoso locutor do país. As histórias reunidas por Braithwaite não deixam dúvida de que, apesar de Stalin - dos seus erros, de suas avaliações estratégicas equivocadas e da sua busca maldosa por bodes expiatórios -, o povo russo resistiu e sobreviveu. Marc Bloch dizia que faltou certo "heroísmo cruel" aos governantes franceses na derrota de 1940. Crueldade heroica não faltou a Stalin: ele foi o responsável pessoal pelos desastres do país antes e durante a guerra. Ele parecia compreender que o povo estava lutando pela Rússia, e não pelo regime. Braithwaite mostra como as pessoas nem sempre foram capazes de expressar seu patriotismo com palavras convincentes: ignorando Stalin, recorriam à fé ortodoxa - o vínculo fervoroso que até mesmo russos agnósticos ainda sentiam entre sua nação e sua religião, entre si mesmos e seus ancestrais. Já Martha Gellhorn (1908- 1998) não esteve em Moscou, na frente oriental da 2ª Guerra, nem conheceu as histórias de Ielena, Lev ou Nicolai. Em compensação, postando-se ao lado das pessoas comuns, tragadas pela violência da guerra, esteve presente na maioria dos confrontos bélicos do século 20. Cobrindo período que vai da Guerra Civil Espanhola, em 1937, até a incursão americana no Panamá, em 1990, Martha escreveu reportagens notáveis, transformando-se na mais importante correspondente de guerra dos últimos tempos. Traduzido por Anna Luisa Araújo e Paulo Andrade Lemos, A Face da Guerra reúne os seus melhores trabalhos, escritos em linguagem precisa e fluente - sem hesitações emocionais. Começou como uma despretensiosa "turista de guerras" para transformar-se na mais corajosa repórter de conflitos bélicos ao estilo antigo, não hesitando em percorrer cenários perigosos. Logo percebeu o que havia de cruel na frase de Hiran Johnson: "Quando começa uma guerra, a primeira vítima é a verdade." E decepcionou-se com as pautas obrigatórias e restrições a certas reportagens. Ainda assim, em 1946 escreveu: "Embora eu há muito tenha perdido a fé inocente de que o jornalismo é uma luz orientadora, ainda acredito que ela é bem melhor que a escuridão total." Martha visitou alguns lugares tão pouco conhecidos que de repórter se viu transformada em testemunha e suas crônicas, coladas aos acontecimentos, transformaram-se em provas materiais, aquelas juridicamente consideradas "além de qualquer dúvida razoável". Foi assim com a sua reportagem sobre um episódio pouquíssimo conhecido: a invasão da Finlândia pelos soviéticos, em novembro de 1939. Ou com seus textos sobre a Guerra do Vietnã, escritos em 1966, que serviram de fontes para várias organizações humanitárias. O ponto alto é sua crônica de 1946 sobre o julgamento de Nuremberg: são dez páginas nas quais ela descreve, um a um, os 22 nazistas acusados, incluindo Göring, e os seus crimes - todos provados e documentados, jurados por testemunhas -, todas elas também verificadas e conferidas. Com inusitada sensibilidade, Martha Gellhorn percebeu o constrangimento geral da participação de promotores soviéticos em Nuremberg - já que eles representavam um país que teria dificuldades em se defender das acusações de "crimes de guerra" e "crimes contra a humanidade". Ela só foi intransigente no seu pacifismo, ao concluir que "fome, dor, medo, luto e perda desesperada do lar são as únicas emoções que não têm nacionalidade". Os dois livros, o do historiador e o da repórter, afinal, se completam, pois, como sismógrafos, desvendam a face mais cruel das guerras, refazendo uma história de milhares de vítimas - proibidas de um futuro ao qual tinham todo o direito de compartilhar. Elias Thomé Saliba, professor titular de Teoria da História da USP, é autor, entre outros livros, de As Utopias Românticas (Companhia das Letras)

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