Senhor das longas durações e das coisas que ficam

Ele se entediava com a filosofia. O Brasil o salvou. E levou-o a entender por que o pensamento selvagem nada tem de atraso

PUBLICIDADE

Por Gilles Lapouge e PARIS
Atualização:

Claude Lévi-Strauss nasceu em 28 de novembro de 1908, em Bruxelas, de pais franceses. Em breve será centenário. Isso é uma façanha, mas as relações que Lévi-Strauss manteve com a passagem do tempo sempre foram estranhas. Ele prefere o tempo que não passa. Há alguns anos, ele me dizia que à força de freqüentar os povos "primitivos", seus mitos e suas fábulas, tinha virado um homem do neolítico. Não era uma boutade. Lévi-Strauss se debruçou, não sobre a "longa duração", mas sobre durações muito, muito longas, as durações letárgicas, quase paralisadas. A ciência que o solicitou e guiou com mais constância não foi nem a antropologia, nem a filosofia, nem a história, nem a sociologia. Foi a geologia. Quando descobriu, muito jovem, Freud, ele viu a psicanálise "como uma aplicação ao homem individual de um método do qual a geologia representava o cânone". É fato que ele sempre manifestou um interesse singular pelos objetos da natureza - árvores e flores, animais, rios. Mas, entre todos esses objetos, foi a pedra que primeiro o fascinou, o pedregulho. Uma bela pedra, um bonito veio de basalto ou uma chapada de arenito, e ele fica em transe. Uma de suas mais belas lembranças é geológica. Muito jovem, ele estava de férias nas Causses de Cévennes. Observando a montanha, ele imaginou, de repente, que ali estava, debaixo de seus olhos, ao alcance de sua mão, algumas centenas de milhões de anos fixados e congelados no ponto de encontro de duas camadas geológicas entrelaçadas. Exultou. Sua juventude conheceu outros prazeres. Seu pai era um pintor de retratos. Ele tinha o gosto pelas coleções, bem no espírito do século 18, quando se apreciavam os "gabinetes de curiosidades". A criança contraiu o vírus. Recolhia objetos desemparelhados, plumas, instrumentos musicais. "Aos 15 anos", ele conta, "eu era equipado com algumas convicções rústicas que ainda me guiam." Não seria sua obra um imenso e fabuloso "gabinete de curiosidades", dentro do qual ele ordena, classifica e ilumina, não os objetos insólitos, mas mitos, modos à mesa, pensamentos selvagens ou não, fonemas, estruturas de parentesco? Bons estudos. Primeiro, professor suplente de filosofia em 1931. Depois, professor titular. A filosofia o aborrecia. O Brasil o salvou. Ao conseguir um posto de professor na USP, exultou. Quanto à natureza, com o Brasil ele estava servido! Seu "olho deslumbrado mediu a riqueza e a variedade dos objetos". Ele passaria belos anos em São Paulo em companhia de uma plêiade de professores franceses excepcionais, o historiador Fernand Braudel, o "Bastidinho" (Roger Bastide) e o "Bastidão" (Paul Arbousse-Bastide), Jean Maugüé, Pierre Monbeig. Mas Lévi-Strauss não esqueceu que se afastou da filosofia para melhor se aproximar dos homens pela antropologia. Ele fez várias incursões nas terras dos bororos. Em 1938 aconteceu sua grande expedição para a Amazônia, Mato Grosso, na qual estudou os nhambiquaras e os tupi-kawahib. O Brasil é, pois, uma das chaves de seu destino notável. Não só permitiu que Lévi-Strauss trocasse "uma cadeira de professor numa pequena cidade francesa pelo ensino numa das maiores cidades do mundo", como toda sua obra futura se articularia em torno do estudo das sociedades indígenas. O Brasil forma a coluna vertebral dessa obra, uma das mais grandiosas deste tempo. Por que o Brasil? Há 20 anos, ele me havia dito: "Cheguei ao Brasil por acaso. Eu poderia perfeitamente ter ido para um outro país. Do mundo, eu não conhecia nada... E, de repente, o Brasil. Eram os ?trópicos?, com tudo que este termo evoca de poesia, de mistério, de literatura. Eu esperava uma grande aventura, tomar contato com uma natureza desconhecida e que nunca deixou de me fascinar." Em 1939, a guerra. Ele voltou à França. Um dia, durante o recuo francês, ele estava escondido no campo com outros soldados. Para passar o tempo, observou uma flor de dente-de-leão. Esqueceu tudo, as bombas, as metralhadoras, para "admirar a estrutura maravilhosamente regular". Esse dente-de-leão, ou as outras flores, nunca deixou de ser mencionado na obra por nascer. Como judeu, o professor Lévi-Strauss foi destituído pelo governo colaboracionista do marechal Pétain. Ele chegou a ir para os EUA, onde lecionou na New School for Social Researches. Conheceu o lingüista Roman Jakobson, que inventara, para aplicar em suas pesquisas acadêmicas, a "análise estrutural". Lévi-Strauss se entusiasmou. Com suas pedras e suas flores, com seus bororos, ele fazia, em suma, "estruturalismo sem o saber". Jakobson forneceu-lhe o instrumento para esse "estruturalismo" que, daquele momento em diante, inspiraria todo o trabalho de Lévi-Strauss, assim como o de outros grandes do século, como o psicanalista Jacques Lacan. Após a guerra, em Paris, Lévi-Strauss tornou-se subdiretor do Museu do Homem. Começou então a construção de sua obra, este formidável monumento de palavras que revolucionou não só a antropologia, mas também o olhar que lançamos sobre o mundo e sobre todos os seus locatários, do craveiro ao musaranho, dos homens às nuvens. Os títulos se sucederam: As Estruturas Elementares do Parentesco em 1948, Raça e História, em 1952, depois Tristes Trópicos, em 1955, obra romântica, dilacerante às vezes, quase budista. Apesar de confessar que o homem, no universo, é tão somente uma anedota, um traço, ela atinge uma espécie de alegria esplêndida e melancólica. Após a guinada para o registro literário e romântico de Tristes Trópicos, Lévi-Strauss retornou escrupulosamente a sua disciplina de pesquisador. Totemismo Hoje (1962) surpreende. Suas primeiras palavras dão o tom: "Il en est du totémisme comme de l?hysterie" (numa tradução livre, o totemismo é tão real como a histeria). Ele quer dizer com isso que se trata de uma ilusão, de uma construção arbitrária, ligada a certezas etnológicas equivocadas. Segundo ele, os componentes do totemismo se relacionam à atividade "classificadora" que se encontra em produção no mundo inteiro. A obra seguinte, O Pensamento Selvagem, exploraria esse novo filão. Para ele, o pensamento selvagem não é o pensamento dos selvagens, mas o pensamento "não domesticado", natural, que está em produção em cada homem, e que organiza com estardalhaço as formas de arte, as maneiras de viver, os costumes, o saber popular, as taxonomias, os vocabulários, etc. Contrariamente ao que o termo "pensamento selvagem" poderia sugerir, ele mostrou que esse pensamento é ativo, minucioso, sutil, não pára de classificar, de comparar, de fazer e desfazer relações, de distinguir, de transformar por jogos de relações extremamente delicadas, e que chegam assim mais perto do real, atestando pelo mesmo o parentesco e quase a similitude entre os objetos naturais e o espírito, sendo o espírito ele próprio um desses objetos. A etapa seguinte explorou a mesma via. Com Mitológicas, ele resolve "classificar" uma produção fervilhante, intangível, bizarra, incerta, e que parecia a mais avessa a qualquer classificação: os mitos. Durante 10 anos, ele colecionou os mitos, os comparou, emparelhou suas maneiras de narrar, buscou seus parentescos e suas dessemelhanças. O material sobre o qual trabalhava era infinito: um milhar de mitos provenientes de 200 povos indígenas das Américas. O resultado é soberbo. Quatro grossas obras: O Cru e o Cozido, Do Mel às Cinzas, Da Origem dos Modos à Mesa, O Homem Nu. Persiste, a meu ver, um mistério nessa obra a um só tempo difícil e magnífica. Como foi que esse homem, capaz de nos oferecer esse grande poema noturno que se chama Tristes Trópicos, não teve a tentação de acompanhar sua produção científica com uma exploração mais literária? Eu fiz-lhe essa pergunta um dia. Sua resposta foi sem rodeios. Era evidente que ele teria amado poder escrever romances tão belos como "os de Dickens, de Conrad ou de Proust", mas não tinha os recursos para isso. "Quando era adolescente, eu me sentia capaz de tudo: pintura, música, literatura, sim, nada me assustava e tentei todas essas formas de arte. Eu escrevi, pintei, compus. Toquei todos os instrumentos da música, do violino ao acordeão, e sempre com o mesmo insucesso." Claro, eu não acreditei em uma só palavra de seus argumentos. Os recursos literários, ele mostrou que os dominava à perfeição, não só em Tristes Trópicos. Então, por que ter rodado toda a vida em torno da poesia, em torno da música, em torno da filosofia, em torno do romance, sem contudo penetrar neles? "Quando muito", ele disse com aquele humor britânico do qual nunca se separou, "quando muito eu realizei pequenas investidas furtivas nos territórios privados da filosofia." Eis que o homem das longas durações se acerca de seu centésimo ano. A glória o envolve. Imagino que ele acolha esse aroma com aquele sorrisinho discreto que nele representa o ápice do entusiasmo. Um de seus amigos em São Paulo, o professor francês Jean Maugüé, fala de Lévi-Strauss em um de seus livros: "No fundo, Lévi-Strauss nunca se interessou pelas coisas que desaparecem." Há alguns anos, lembrei a Lévi-Strauss esse juízo de Jean Maugüé. Ele pareceu surpreso, de início, mas depois me disse: "Ah, Maugüé dizia isso? Eu mesmo o poderia ter dito." TRADUÇÃO DE CELSO MAURO PACIORNIK

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.