Sem montanha e sem silêncio

Após uma operação na garganta, o escritor Raimundo Carrero foi proibido de falar... nascia, assim, seu novo romance

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Por Raimundo Carrero
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"Estamos rezando para que sua alma fique em paz." Responda rápido: quem escuta uma frase dessa está vivo ou morto? Tudo bem: morto não estaria. Digamos: quase morto. Pois a ouvi quando tirei o telefone do gancho e não podia falar por causa de uma cirurgia na garganta para a retirada de tumor benigno. Portanto, em recuperação, e trancado num apartamento, sozinho, exposto a sustos e a surpresas. Posto em silêncio. Absoluto. Lembrei-me do provérbio oriental: se os pássaros não cantassem a montanha ficaria ainda mais silenciosa. Quem diria, hein? Há momentos em que até o cântico dos pássaros atrapalha. Pois bem, naquele instante, para o bem da minha saúde, era preciso um silêncio de montanha sem pássaros durante dez dias. É uma experiência de arrepiar os ossos. Porque mesmo sem montanha tive que enfrentar essa espécie de pássaro moderno que canta o tempo inteiro: o telefone. Um esforço e tanto para mim, infalível tagarela. Enchi-me de espírito monástico e esperei o tempo passar. Quando soube que seria operado, resolvi retomar o romance que vinha me atormentando há dois anos: A Minha Alma É Irmã de Deus. Escrevi uma versão curta, uma novela. Podia ser que morresse, mas alguma coisa ficaria para a posteridade. Não morri, imagino. Portanto volto ao texto. Mas eis que o telefone toca. Estou sozinho. Como é que se fala ao telefone sem voz? Não saio do computador, tento escrever, minha personagem, Camila, caminha pela cidade. Toca outra vez, mais uma. Resolvo atender. Sem falar, claro. Outra voz feminina: "Eu sei que é você, Carrero." Meu Deus, e agora? Tinha de acontecer outra vez. Sei que não é um trote porque conheço a voz e a pessoa. Com a unha do indicador dou três batidas no fone. A pessoa entendeu? Insiste: "Eu sei que incomodo, mas preciso lhe dizer que estou rezando, estou fazendo uma corrente." Volto às três batidas, mas ela não diz se está entendendo. "Só quero que você saiba que estamos rezando, eu e nossas amigas, todas." E escuto muito baixinho: "Por sua alma." Será coincidência? E rezando pela minha alma? Bato com força para ela entender que sou um ser vivo. Mais três batidas. E nada. Gostaria de perguntar: "Está me ouvindo?" A voz encerra: "Fique com a paz do Senhor, meu amigo, queremos sua alma em paz." Pronto, agora sou eu quem vai espalhar a notícia da minha morte. Ainda penso que estão apenas brincando, porque costumo dizer aos que me devem: "Quando rezar para as almas se lembre de mim." Volto ao computador. Vou espalhar a boa nova: morri. Começo a escrever. Não, não vou dizer nada. Se ela ouviu minhas batidas deve ter entendido que não sou uma alma do outro mundo. E se ela cismar que ouviu as chamadas do além? Se eu falar em morte vai ser pior. Até porque outros amigos já me passaram e-mails dizendo que correm boatos na cidade. Estou com um câncer. Estou deprimido. Morre não morre. Um pé na cova. Escrevo ou não escrevo? Distraio-me com Camila. Ela quer ser santa, mas acaba de entrar no banheiro para o banho e deixa a porta aberta para que o namorado a veja nua. Toca o telefone. Atendo. A nudez da personagem não me distrai. "Eu sei que é você, Carrero." Meu Deus, começou de novo. Pego um lápis e fico escrevendo frases a esmo. Mesmo assim, dou mais três batidas tímidas. "Não precisa falar." Mais três batidas. "Eu não estou falando." A voz prossegue: "Permaneça assim, quieto, calado. Eu só quero dizer que nós gostamos tanto de você que pensamos na paz de sua alma, até mais, meu amigo." Desliga. Decido voltar ao computador. Escrevo, apago, escrevo. Paro, não escrevo. Quem quiser me matar que me mate. A história começa, porém, com a celebração da vida. E com uma vontade louca de receber telefonemas. Na manhã do dia 29 de novembro fui operado pelo médico Jorge Pinho, num instante de forte tensão nervosa: de um lado porque tinha de enfrentar o bisturi; e, de outro, porque aguardava o anúncio dos ganhadores do Prêmio Portugal Telecom. Meu nome estava entre os finalistas, com o romance O Amor Não Tem Bons Sentimentos. Fizera um grande esforço para comparecer à solenidade, em São Paulo, na noite daquele dia. Impossível. Um amigo ficara de me telefonar, tão logo o prêmio fosse anunciado. Horas depois, voltei ao apartamento do hospital, ainda sonolento com a anestesia. No começo da noite alguns parentes me visitaram no hospital. E o telefone não tocava. Ansioso, tentei dormir. A festa já devia ter começado. Mais visitas, mais inquietações. Eu não queria que ninguém percebesse. Liguei o aparelho de televisão. Acompanhei os telejornais. Nunca desejei tanto que o telefone tocasse. Apaguei as lâmpadas. Os nomes dos vencedores já foram anunciados. Foi preciso tomar um comprimido. Acordei cedo. Bem cedo. Fingindo. Ninguém precisava me dizer nada. O telefone não tocara. Pedi um jornal. Li nota por nota, palavra por palavra. E nada. Nenhuma notícia sobre o prêmio. Em casa, pensei aliviado: já não preciso que ninguém me ligue. O telefone se transformara num velho aparelho obsoleto. Inútil. Sem prêmio, sem voz, apenas o silêncio me interessava. Foi quando reiniciei meu livro. Pacientemente. Numerando as páginas, distribuindo os capítulos, montando as cenas e os cenários. Eis que o telefone toca. Ouço aquela voz piedosa que reza pela minha alma. Noutras vezes toca, e toca, e toca. Não vou atender mais e pronto. Nem agora nem nunca. Escrevo. Anoto no alto da página em branco: "A minha alma é irmã de Deus." E logo abaixo: romance. Não paro mais. Confesso, se o telefone tocou, não escutei. Talvez porque a minha personagem, Camila, seja silenciosa, meticulosa e lenta. Encontro, finalmente, o tom e o ritmo da história. Ainda em silêncio, concluo a primeira versão. Não preciso de ninguém que reze pela minha alma. Por enquanto. Raimundo Carrero, escritor, é autor de O Amor Não Tem Bons Sentimentos

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