Sem estas obras, não é possível compreendê-lo

Criações sinfônicas dizem muito sobre sua evolução artística e evidenciam um de seus grandes talentos: a orquestração

PUBLICIDADE

Por João Marcos Coelho
Atualização:

O que têm em comum Franz Schubert e Heitor Villa-Lobos? Muito, se considerarmos que ambos precisaram esperar muito tempo para sua obra ser conhecida, executada em concertos públicos e corretamente avaliada. Infelizmente para nós, porém, Villa está sofrendo ainda mais. Os números e algumas informações históricas confirmam isso. Ouça trecho da Dança dos Mosquitos Schubert compôs entre 1810 e 1828 cerca de mil obras, mas quando morreu apenas uma centena delas estava publicada. Os 90% restantes eram simplesmente desconhecidos do público: as nove sinfonias, as quinze óperas, a produção camerística e pianística mais ambiciosa. Do "rouxinol" vienense conhecia-se uma pequena parte das canções (os "lieder", nos quais foi insuperável) e as pecinhas descompromissadas que alegravam o dia a dia das moçoilas casadoiras. Ele jamais ouviu em concertos públicos as sinfonias, assim como a maior parte de suas obras de efetivo instrumental e vocal mais amplo, as óperas e as missas, por exemplo. Em 1860, 32 anos depois de sua morte, Eduard Hanslick, o famoso crítico musical austríaco amigo de Brahms, escrevia no principal jornal de Viena sobre o espanto que provocavam a todo momento as descobertas de novas composições de Schubert e dizia que ele "compôs na invisibilidade". Ou seja, a fama do mais vienense entre os compositores austríacos da primeira metade do século 19 foi secreta durante toda a sua vida e também nas décadas seguintes. Somente de 1870 em diante Brahms começou a publicar sua obra (começou organizando o monumental conjunto dos 600 lieder). O mundo começava a conhecer a verdadeira dimensão do talento de Schubert. O caso de Villa-Lobos é mais trágico, pois, passado meio século de sua morte, ele ainda aguarda... a publicação de parte significativa de sua obra. Ele também compôs cerca de mil peças, mas as que estão editadas sequer chegam perto de uma centena. Praticamente doou seus direitos ao editor Max Eschig em 1927, em Paris, para ter 14 obras publicadas. Ele sabia que sem partitura obra musical nenhuma pode ser executada. Muitas orquestras e maestros internacionais adorariam programar mais composições dele em suas temporadas de concertos. Mas, como mostram em entrevista ao Estado nesta edição, as partituras simplesmente não existem. Boa parte das suas composições mais ambiciosas - como os imponentes ciclos das sinfonias e dos concertos para piano e orquestra, além das óperas - permanece secreta. E, quando existem, como as de Max Eschig, são toscas, não apresentam nível profissional de edição. Ou seja, a rigor mesmo só são decentes as partituras das obras recentemente editadas pela Academia Brasileira de Música. (Leia mais a respeito desta questão na página anterior.) Diante de um estado de coisas como este, a gritaria é legítima e obrigatória. Que adianta comemorar a efeméride tocando novamente as Bachianas, alguns dos Choros, ou a produção pianística e violonística?, esperneiam corretamente os críticos. Os músicos também gostariam de tocar menos vezes o mesmo, e conhecer outras obras dele. O Villa é muito mais do que isso, sabemos todos. Só que os músicos não têm condições mínimas para levar a parte "invisível" de sua obra para os concertos. Por condições mínimas, entenda-se: as partituras. Schubert morreu apenas 20 meses depois de Beethoven, em 1828. E porque era publicamente conhecido apenas como o compositor de canções e pecinhas para piano, levou de Schumann, em 1840, a qualificação de "caráter feminino". Lógico: ele só conhecia a música com a qual o compositor pianista regava as famosas noitadas de vinho-mulheres-música conhecidas como "schubertíadas". É o nosso caso hoje com Villa. Ele construiu com tamanho talento a imagem de músico caudaloso, desigual, mitômano (leia sobre o tema o livro Heitor Villa-Lobos, de Paulo Renato Guérios, publicado pela FGV em 2003), que nós nos acostumamos a descartar as sinfonias, os concertos, poemas sinfônicos e as óperas com o argumento de que são obras "muito desiguais", cheias de "altos e baixos". É um daqueles dogmas irresponsáveis que acabam perdurando por décadas por causa de uma única palavra: desinformação. Quem conhece mesmo, no detalhe, as sinfonias, as óperas, os poemas sinfônicos e os concertos? Somente os malucos com paciência de monges que pesquisaram nos manuscritos do Villa, muitos deles tão confusos que apenas um trabalho de edição crítica poderia nos fazer chegar a entendê-los - e quem sabe um dia levá-los aos concertos públicos. Ora, um compositor com o temperamento criador do Villa é alguém que deve ter colocado o melhor de seus esforços nas obras de grandes dimensões. Precisamos saber com urgência em que medida foi bem-sucedido nesses gêneros mais ambiciosos. As sinfonias, por exemplo. São 12, cobrindo largo período de sua vida, entre 1916 e 1957. Nenhuma com partitura profissionalmente editada. Por aqui, julga-se que não vale a pena gravá-las. Repete-se o mantra de que constituem um grupo de obras desiguais. Pois lá fora dão hoje ao Villa a importância que ele não parece ter em sua própria terra. Quem está fazendo uma bela integral - a primeira, imagine - das sinfonias do Villa é a Orquestra Sinfônica da Rádio de Stuttgart, com o maestro Carl St. Clair, para o selo CPO. Em 2008, por exemplo, St. Clair gravou a Sinfonia nº 10, encomendada pela prefeitura de São Paulo ao Villa no 4º centenário da cidade, em 1954. Essa é a segunda gravação da sinfonia, a segunda internacional (a primeira foi da orquestra de Tenerife, que a registrou porque Villa usa versos do padre Anchieta na obra - e Anchieta nasceu lá). Não há nenhuma gravação brasileira das sinfonias. Concedo que o conjunto soe desigual: as cinco primeiras são obras de juventude (foram escritas até 1920) e as demais entre 1944 e 1959. Mas são imprescindíveis para melhor conhecermos um dos maiores talentos de Villa: o da orquestração. Outro tanto se pode dizer dos cinco concertos para piano. Argumenta-se que são pesadões, desequilibrados. Não importa, precisamos conhecer também as partituras para os avaliarmos (existem duas integrais: de Fernando Lopes com a Sinfônica de Campinas, esgotada, e de Cristina Ortiz com a Royal Philharmonic Orchestra). Roberto Duarte gravou vários dos poemas sinfônicos para o selo Marco Polo. Mas, como as óperas, as sinfonias e os concertos para piano, estas obras precisam começar a frequentar nossas salas de concerto. Por isso, edições decentes são fundamentais. Se nós não mostramos vontade de conhecer nosso maior compositor, quem o fará? Compositores bem menores do que Villa, como o norte-americano Aaron Copland e o finlandês Jean Sibelius, por exemplo, são muito mais badalados internacionalmente do que o brasileiro. Injustiça que a circulação das partituras com certeza desfará a médio prazo. Que adianta igualmente o governo fazer coro com o mantra de que Villa-Lobos é não apenas o maior compositor brasileiro, mas um dos mais importantes e decisivos no panorama global do século 20, em pé de igualdade com nomes tão ilustres como os do húngaro Bela Bartók e o espanhol Manuel de Falla? É doloroso constatar que com apenas mais R$ 1,4 milhão toda a obra de Villa-Lobos poderia ser corretamente publicada, em edições críticas que permitam a precisa avaliação de sua importância no contexto da música do século 20. É mais trágico ainda saber que aparentemente ninguém no Ministério da Cultura move uma palha para viabilizar um projeto desse significado cultural para o País.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.