Saramago em versão atraente para a moçada

Montagem do grupo Pé na Porta leva ao palco O Conto da Ilha Desconhecida, em que os personagens nem sabem quem são

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Por MARIÂNGELA ALVES DE LIMA
Atualização:

Quem se deixa ensinar pelas coisas aprende sem cessar e, portanto, não haveria motivo para implicar com o teatro cujo propósito descarado é instruir os espectadores. Experiência entre outras, a fruição da arte deixa, quer desejemos ou não, um resíduo de aprendizagem que pode resumir-se ao fiapo de sensação flutuando, talvez para sempre, no espaço da memória. Ainda assim, artistas imbuídos da missão pedagógica e plantados em um pódio imaginário para esclarecer crianças e jovens sobre qualquer tema pertinente e urgente dão a impressão de que estão logrando seu público. Convidam para uma festa e aproveitam a oportunidade para satisfazer outros objetivos. Devem ter uma lembrança recente desse engodo - foram crianças há pouco - os participantes do novíssimo grupo Pé na Porta, porque escolheram como material de trabalho uma história de José Saramago em que as personagens não podem sentenciar sobre coisa alguma, uma vez que sequer sabem quem são. Por isso mesmo, sabendo que não sabem, põem-se a caminho tal qual fizeram os portugueses de outrora e como fazem hoje e sempre os jovens de todos os tempos e lugares. Pois enquanto reconta um conto, cujo desígnio é a celebração da ânsia sempre insatisfeita de saber, o grupo não consegue abdicar de todo da tarefa missionária e convida o espectador a tornar-se leitor. Apresentado em horário vespertino aos fins de semana, conveniente para crianças acompanhadas ou jovens que podem flanar dispensando a presença de adultos, O Conto da Ilha Desconhecida não se endereça de modo explícito a uma faixa etária determinada, mas é uma oferta interessante para a moçada que não quer misturar em uma só tarde obrigação curricular e teatro. Ainda mais atraente porque os intérpretes e músicos se interessam, em primeiro lugar, pela apreciação estética da literatura e da música entrelaçadas pelo espetáculo. Linha por linha, ponto e vírgula, nada se perde na transposição cênica. Seguindo a matriz das novelas ibéricas a narrativa de Saramago desdobra-se a partir de repetições. Uma peripécia, recontada, é acrescida de um detalhe novo que modifica sutilmente a condução dos episódios. Assim, é preciso que várias portas se abram, cada vez de um modo um pouco diferente, para que seja possível atribuir o valor devido à engenhosidade dos complementos verbais e das variações sintáticas. Em grande parte, os significados dependem da elocução dos intérpretes que devem distinguir, antes das personagens, as modificações de ritmo e intensidade que fazem progredir a narrativa. Nesse sentido, o desempenho do elenco parece resultar de um convívio íntimo com a estrutura narrativa e, talvez, com o antiquíssimo procedimento de análise sintática, já que nenhuma partícula é desperdiçada e os verbos são conjugados em consonância com a idéia de tempo. Ao todo, a concepção do espetáculo secunda a nitidez da expressão verbal. E bastaria essa história tão bem concebida e recontada para instigar a busca do prazer literário. Como se trata de um grupo de teatro, contudo outros signos entram em correspondência para animar o espaço cênico. E a graça particular desta versão da história consiste em evitar os estereótipos sugeridos pela máscara social. Interpretados segundo o sistema "coringa"- em que vários atores fazem a mesma personagem - a mulher da limpeza, o rei, o homem que quer navegar, os objetos e a natureza sugerem posturas e gestos surpreendentes em vez de lógicos, ligados a um elemento de composição que, de acordo com a concepção do espetáculo, deve sobressair-se. Deste modo, o rei não se afirma com a arrogância dos mandões, mas com a lassidão dos indolentes, enquanto o súdito não se curva nem desafia o senhor. Na interpretação do grupo, o homem que busca é sereno e pragmático. Não poderia fazer outra coisa senão buscar e, sendo assim, não é preciso atribuir-lhe ímpetos que convém aos aventureiros românticos. Paulo Marcos dirige o espetáculo enfatizando os espaços vazios do palco por onde devem evadir-se os marinheiros do oceano da imaginação. Estão em cena novos e por vezes prodigiosos modos de usar baldes e vassouras, índices da infinita potência da cena para ressignificar objetos.

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