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Saraceni conta como fez história

Há 50 anos, Arraial do Cabo foi um dos faróis do que seria o Cinema Novo

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

"Em Arraial, eu tinha 26 anos, estava em forma, nadava e jogava futebol na praia todos os dias." É assim que, no livro Por Dentro do Cinema Novo, Paulo César Saraceni reconstitui a experiência de filmar Arraial do Cabo. O filme, tecnicamente um média-metragem de uma hora, está completando 50 anos e ganha a homenagem do 14º É Tudo Verdade. Saraceni conversa pelo telefone com o repórter do Estado. À citação da frase do livro, ele reage como quem entra no túnel do tempo. "Foi uma fase muito feliz da minha. Estava fazendo o primeiro filme e o que ainda não sabia é que Arraial teria uma acolhida excepcional." Saraceni se lembra - mas sua viagem interior não é nostálgica. Saraceni pode se lembrar com entusiasmo de seus verdes anos, mas ele está mais empolgado com o filme que conclui atualmente - O Gerente é um sonho antigo do diretor, desde que o leu o livro de contos do poeta Carlos Drummond de Andrade. Ney Latorraca faz o protagonista, cercado por cinco atrizes, pois o conto possui elementos para cinco grandes papéis femininos. Ana Maria Magalhães e Silva, Djin Sganzerla, Simone Spoladore, Letícia Spiller e Joanna Fomm, que faz a personagem narradora (o original é narrado pelo autor). Em filmes como Porto das Caixas, Capitu e O Viajante, Saraceni foi sempre atraído por personagens femininas fortes. O ?velho? não perdeu o olho nem a sensibilidade pelas mulheres. Ele chega a arriscar que O Gerente é um dos filmes mais importantes atualmente em produção no País - e o maior que fez. Um filme inovador, feito em digital, mas Saraceni não entra em detalhes, nem há tempo para isso, quanto às inovações. No domingo, ele participa de um debate sobre Arraial do Cabo em São Paulo (haverá outro, no Rio, no sábado). Anuncia que poderá mostrar algumas imagens em DVD do novo filme. O fotógrafo é Luiz Carlos Saldanha. Como será essa parceria que Saraceni inicia agora? Tudo o que ele fez antes tem a marca de uma colaboração importante - com o fotógrafo, gravurista e cineasta Mário Carneiro. Ambos começaram a trabalhar juntos justamente em Arraial do Cabo. Permaneceram amigos, e cúmplices, até a morte de Mário. Arraial tem uma fotografia elaborada, uma textura, como raras vezes se vê num documentário. Há 50 anos, o Brasil fazia documentários, claro, mas não havia uma grande tradição deles no País. Paulo Emílio Salles Gomes foi dos primeiros (o primeiro?) a destacar a importância desse filme. Logo em seguida, Glauber Rocha e Jean-Claude Bernardet viram em Arraial a pedra de toque do nascimento do documentário brasileiro. No livro Por Dentro do Cinema Novo, Saraceni conta que estava numa mesa com amigos, pronto para partir para Roma, onde ia cursar o Centro Sperimentale di Cinematografia, quando o poeta e antropólogo Geraldo Markham, que acabara de fazer uma pesquisa em Arraial do Cabo, lhe disse que ele tinha de filmar aquela pesquisa. Saraceni embarcou na proposta. O Museu do Índio produziu o filme. A questão do dinheiro foi complicada, mas saiu. Nenhum contrato assinado. Era tudo na palavra, valia o combinado. Foi assim, heroicamente, que nasceu uma obra-prima do cinema brasileiro e mundial. O jovem Saraceni seria comparado a Luis Buñuel, mesmo que, como cinéfilo, seu grande amor fosse Roberto Rossellini. Arraial do Cabo acompanha a rotina dos pescadores e suas mulheres. O tema do filme - rosselliniano, segundo o diretor, é a espera -, mas Saraceni, com base na pesquisa de Markham, captou uma mudança na região. A instalação de uma fábrica começou a mudar o perfil econômico da região. O filme trata não apenas de pescadores, mas de operários. Uma das propostas - ou a ?proposta? - do Cinema Novo era colocar a cara do Brasil na tela. Foi o que Saraceni fez em Arraial do Cabo. Você pega uma foto do jovem Saraceni e ele era um homem muito bonito, como Antônio Carlos Jobim, de quem foi amigo - e que fez para ele a trilha de Porto das Caixas, seu primeiro longa de ficção (como João Gilberto faz agora a música de O Gerente, mas o diretor não sabe se conseguirá esperar mais um tempo pelo ritmo do compositor). Saraceni era atleta. Jogava nos juvenis do Fluminense, que, na época, era presidido pelo escritor Octavio de Faria, católico de carteirinha, autor de uma obra importante, A Tragédia Burguesa, "com mais volumes do que a busca do tempo perdido por Marcel Proust", ele destaca. Por meio de Octavio de Faria, Saraceni conheceu Lúcio Cardoso, de quem adaptou Crônica da Casa Assassinada (e o escritor também lhe forneceu o argumento para Porto das Caixas). Quando se ligou a Leon Hirszman e passou a integrar o grupo que daria origem ao Cinema Novo, Saraceni descobriu Eisenstein e a montagem. O Encouraçado Potemkin marcou um momento decisivo - uma revolução - do cinema. Mais tarde, a descoberta de Rossellini teve outro efeito fundamental sobre o jovem autor. Foi, inclusive, com uma tese sobre as duas revoluções, de Eisenstein e Rossellini, que Saraceni conseguiu sua admissão no Centro Sperimentale. Eisenstein sempre o fascinou racionalmente. Com Rossellini, a relação foi mais visceral. O autor de Roma, Cidade Aberta e, depois, Viagem na Itália foi o grande mestre de Saraceni, mas ele também foi formado (e informado) pela literatura de Lúcio Cardoso e Octavio de Faria e pelas influências decisivas de Mário Carneiro e Oswaldo Goeldi - o gravurista. Foi dessa soma de influências narrativas e estéticas que nasceu o cinema de Saraceni, o realismo documentário de Arraial do Cabo e o realismo psicológico de Porto das Caixas, duas fontes definidoras do Cinema Novo. O artista agora homenageado pelo É Tudo Verdade fez história. Fez? Saraceni está vivíssimo e querendo fazer história de novo, com O Gerente.

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