Roubos que promovem a civilização

Contos Filosóficos do Mundo Inteiro se apropria de patrimônio narrativo milenar

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Por Ronaldo Correia de Brito
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O escritor argentino Jorge Luis Borges sentia-se atraído pela ideia "de que todos os eventos ocorridos no universo, por ínfimos que sejam, concorrem necessariamente para os demais eventos que lhe sucedem". Segundo essa concepção, para que tenham surgido obras como as de Shakespeare, Dante e Tolstoi foi preciso a contribuição de milhares e milhares de narradores de menor relevância ou anônimos, laborando de modo ininterrupto em todas as latitudes do nosso planeta, construindo rios comunicantes de saberes. Sem esses narradores filósofos, que o roteirista de cinema e escritor francês Jean-Claude Carrière sabiamente chama de ?mentirosos?, faltaria alicerce para o edifício da cultura ocidental e oriental, em que brilham no andar mais elevado, lá no topo, os ?gênios da humanidade?. Curiosamente, foi pelo mesmo raciocínio borgiano que se tornou possível a existência desses Contos Filosóficos do Mundo Inteiro (Ediouro, 2009). Carrière se permitiu o direito ao uso dos bens de cultura, ou seja, ele acessou um patrimônio de narrativas de milhares de anos, como se fosse um legado de sua memória pessoal. Não é em vão que ele afirma no prefácio do livro: "A antiguidade destas histórias é extremamente variável e a origem geralmente desconhecida, pois elas constituem um bem que um povo rouba do outro." Ao longo de 25 anos Jean-Claude Carrière ouviu, leu, selecionou e por fim recontou histórias do mundo inteiro, num primeiro volume intitulado O Círculo dos Mentirosos (Códex, 2004), em que defendeu num magnífico ensaio todas as justificativas para ter se dedicado a essa tarefa, os motivos porque deixou de lado os mitos, os relatos fantásticos e as fábulas morais, preferindo "histórias elaboradas, frutos de reflexão, feitas para ajudar a viver, eventualmente a morrer, concebidas e contadas em sociedades organizadas e consolidadas, que se acreditam duráveis e, por assim dizer, civilizadas". Noutros dez anos de pesquisa e escuta ele aprontou um segundo volume, agora publicado no Brasil. Conhecido por seu trabalho de roteirista em seis dos mais importantes filmes do cineasta espanhol Luis Buñuel, e por iguais colaborações com os diretores Andrzej Wadja, Milos Forman e Volker Schlöndorff, ao lermos os contos filosóficos pensamos tratar-se de um outro Carrière. Nada neles lembra o surrealismo dos filmes de Buñuel, como A Bela da Tarde, O Fantasma da Liberdade ou O Discreto Charme da Burguesia. O Jean-Claude Carrière que afirma o prazer antigo e universal do conto está mais próximo do Carrière especialista em cultura, filosofia e religiões da Índia. Reconhecemos o parceiro de Peter Brook - diretor inglês de cinema e teatro, radicado na França -, com quem ele dramatizou o épico indiano Mahabharata, um dos mais importantes espetáculos teatrais do século 20. Carrière publicou em prosa a sua adaptação do poema védico, numa linguagem simples, acessível, que lembra a versão francesa de As Mil e Uma Noites, de Antoine Galland. Os Contos Filosóficos do Mundo Inteiro são narrados à maneira de Carrière. Não há tentativas de falsificação; o leitor não deixa nunca de saber que é um intelectual do Ocidente quem reconta as histórias. Nunca imaginamos tratar-se de um velho árabe, nem de um brâmane, nem de um feiticeiro ameríndio ou de um mestre zen. Ao falar sobre as narrativas do livro como bens que povos roubam de outros, Carrière toca na relação de culturas dominantes e dominadas. A história do homem é uma sucessão de guerras e rapinagens. Inglaterra, França, Espanha e Alemanha, para citar apenas esses conquistadores expansionistas, apoderaram-se de tesouros das civilizações egípcia, indiana, chinesa, grega e árabe, atulhando seus museus com o que melhor produziram esses povos. Refiro os bens perecíveis, que desaparecem com o fogo, os maremotos e as guerras: pinturas, esculturas, cerâmicas, joias, tapeçarias, sarcófagos, palácios e templos. A apropriação feita por Carrière é de um saber transmitido de forma oral ou escrita, principalmente através de livros, que podem ser reproduzidos infinitamente. Antes de encenar o Mahabharata, Peter Brook andou pelo Oriente, esteve no Afeganistão, percorreu a África e retornou dessa viagem com as ferramentas do seu futuro teatro. É possível que ele sentisse o mesmo que afirma Carrière: "Nós todos o sabemos: o que certo dia escutamos e que nos agradou, passamos a sentir como uma necessidade, um leve dever de transmitir. Quanto a isso, nada de segredo, nada de guardar de forma ciumenta." E Brook não fez mais que passar adiante o seu aprendizado de anos. O mesmo que fez Carrière ao nos legar esses Contos Filosóficos do Mundo Inteiro. Da mesma maneira que se considera no direito de se enriquecer com os bens de cultura legados por várias civilizações, Carrière generosamente acredita que todos os homens possuem esse mesmo direito. E não guarda de forma ciumenta o que adquiriu numa vida de estudos, pesquisas e coletas. Trabalha para nos transmitir esse legado, com sua voz narrativa e escrita própria. E o faz de maneira respeitosa, considerando que "A beleza de uma história vem quase sempre de certa obscuridade". Põe um foco de luz sobre as histórias de todos os tempos, sem tirar-lhes o encantamento e o mistério. Será lamentável se Jean-Claude Carrière não viver o bastante para nos entregar o terceiro volume de O Círculo dos Mentirosos, como anunciou no prefácio dos Contos Filosóficos do Mundo Inteiro. Pois essas histórias que "sobreviveram às guerras, às invasões, ao aniquilamento dos impérios, resistiram aos séculos e avançaram através das nossas memórias como muitos dos nossos segredos" continuam vivas, nos alegrando e instruindo graças à existência de milhares de narradores anônimos e "Carrières". Ronaldo Correia de Brito, médico e escritor, é autor de Faca, Galileia e Livro dos Homens Contos Filosóficos do Mundo Inteiro Jean-Claude Carrière Tradução de Cordelia Magalhães Ediouro, 304 págs., R$ 49,90

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