Retrato dos artistas quando jovens

Samir Machado de Machado e Antônio Xerxenesky demonstram que existe qualidade na nova produção

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Por Ricardo Lísias
Atualização:

Não me resta dúvida de que a literatura brasileira contemporânea viveu um péssimo momento nos últimos anos. No entanto, também me parece claro que aos poucos a situação tem melhorado e, resta-nos torcer, se o ritmo for mantido talvez em alguns anos tenhamos novamente um conjunto de autores menos preocupados com o marketing e a imagem pessoal, ocupando-se sobretudo com a literatura. Um bom argumento para demonstrar esse ressurgimento da qualidade (e com ela da nossa esperança) é a publicação recente de livros de autores ou inéditos ou afastados do mainstream. Em Porto Alegre, a Não Editora, recém-criada, tem colocado nas livrarias algumas surpresas bastante agradáveis. Duas delas, dos últimos meses, são os livros O Professor de Botânica, de Samir Machado de Machado, e Areia nos Dentes, de Antônio Xerxenesky. Os dois estão afastados completamente da publicidade e seus textos não deixam entrever a enorme concessão técnica e ideológica que começou a ser feita na nossa literatura. Ao contrário, Machado e Xerxenesky demonstram preocupações formais concretas, lutam a cada página para compor um estilo particular e representativo e ambos têm uma boa noção de linguagem. O enredo dos dois livros, muito diferentes entre si, é matreiro, com uma sagacidade surpreendente e muita inteligência. Sutileza, por outro lado, não é uma característica que exclui as outras que citei, aparecendo no fim de tudo para compor um cenário muito atraente e novo. Os dois livros articulam diversos clichês de uma maneira surpreendente e, sem exagero, pode-se dizer que rearranjam a sátira de uma forma muito original: Machado, deslocando a narratividade do chamado "romance de campus" para uma discussão das ferramentas literárias, e Xerxenesky, tentando encontrar a validade contemporânea de um gênero muito trabalhado, o faroeste. O Professor de Botânica descreve a atividade acadêmica de um biólogo meio misantropo e muito carente, com dificuldade de convivência, muita vaidade e certa incompreensão pela vida. Professor universitário, ele resolve empreender uma excursão a uma reserva ecológica. Ele, outro docente (portanto, um inimigo) e dois alunos partem atrás de espécies desconhecidas, quando uma chuva os surpreende e acaba causando uma previsível tragédia. A novidade de Machado fica por conta da articulação dos elementos de previsibilidade: somos apresentados de imediato ao resultado final da aventura e mesmo assim ela nos surpreende. A engenharia que compõe o romance coloca a surpresa antes do fato e com isso joga os acontecimentos para o primeiro plano, deixando a narrativa toda embasada nessa inversão habilidosa. Areia nos Dentes é um livro que mistura uma dor nostálgica e amarga a um humor contido e, ao mesmo tempo, irrequieto. Algumas cenas, como o duelo que deve ser o mais fora de lugar do mundo, confundem ao causar riso enquanto é fácil compor na imaginação o rosto sofrido das personagens. Com uma linguagem a caminho da desestruturação, o leitor aguarda apenas a morte tão presente nos faroestes, quando uma brusca inversão propõe um novo destino. Da violência o enredo parte para uma espécie de nova busca e a solução final é bastante lírica. Emociona. Xerxenesky recompõe o gênero através de um tipo de ressurreição transtornada e muito divertida, tanto da linguagem quanto das personagens que ela compõe. E, assim, o faroeste retorna como se fosse novo, tão velho como o gênero romanesco, tão viçoso como a boa literatura. Vale torcer para que o bom momento continue. A pressão marqueteira das grandes editoras produz um tipo de autor muito concessivo e convencional. Até há bem pouco tempo, muitos dos nossos "novos escritores" eram assim. Isso parece estar mudando. O leitor exigente só tem a ganhar. Ricardo Lísias, escritor, é autor, entre outros livros, de Duas Praças (Globo)

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