Retrato de um poeta e seu tempo

Concerto de Ispinho e Fulô escapa do laudatório ao falar de Patativa do Assaré

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Por Beth Néspoli
Atualização:

A simples visão da cenografia que toma todo o centro da sala entre as duas fileiras de cadeiras laterais reservadas ao público já desperta a sensação de que se verá um belo espetáculo. Vários objetos rústicos, como tijolos artesanais, lamparinas, chapéus de couro, flores coloridas de papel, dezenas de sinos de tropeiro, desses que ficam pendurados no pescoço do gado, espalham-se pelo chão da sala no 3º andar do Sesc da Avenida Paulista. Sobre o piso forrado de papel pardo, esses objetos formam uma atraente cartografia, com nomes como Cariri e Assaré escritos a giz. Concerto de Ispinho e Fulô é o título do espetáculo que toma conta desse cenário e surgiu do desejo do ator pernambucano Dinho Lima Flor falar sobre o poeta Patativa do Assaré (leia ao lado). De saída, vale dizer que não será mais uma daquelas criações, muito comuns nesses casos, em que a vida do homenageado vai sendo contada cronologicamente, com cenas ilustrativas entre números musicais, cujo tom reverente remete às ?vidas de santo?. Nesse musical, o grupo acerta por compartilhar com o espectador o seu mergulho no universo desse agricultor que jamais deixou de viver na pequena cidade cearense de Assaré, mas teve seu talento reconhecido ainda em vida, e sua postura política libertária o levou a compartilhar o palanque das Diretas Já com o antropólogo Darci Ribeiro. Por exemplo, é deliciosa a cena em que um grupo de jovens paulistas vai entrevistar o poeta e o encontro se transforma numa espécie de desafio em versos - o poeta fala poesias de sua autoria e os jovens atores se valem de Drummond a Manuel Bandeira. Fictícia, essa cena é realizada de forma a revelar o conservadorismo estético da poeta popular e ao mesmo tempo sua sabedoria, sensibilidade e conhecimento de obras como as de Olavo Bilac e Castro Alves. Ao fim, o diálogo se estabelece com o conhecimento comum de Camões e, mais ainda, na antropofagia dos jovens que criam uma música cujos versos falam dos engarrafamentos e da garoa de São Paulo, porém no mesmo estilo do poeta do sertão. "Não queríamos retratá-lo como um gênio, mas como um homem talentoso que soube ler o seu tempo e carrega suas contradições", diz Rogério Tarifa, diretor desse Concerto. Tarifa foi convidado à direção por Dinho, fundador da Cia. do Tijolo com os atores Rodrigo Mercadante e Fabiana Vasconcelos Barbosa, integrantes também do teatro Ventoforte de Ilo Krugli. A homenagem ao poeta começou com um sarau lítero-musical, um show, intitulado Cante Lá Que Eu Canto Cá. Não foi o suficiente para Dinho e sua trupe. Chamaram então Tarifa - ator e um dos diretores da premiada companhia paulistana São Jorge de Variedades - para a criação de Concerto de Ispinho e Fulô que, apesar do título, vai bem além do concerto musical. É ótimo e teatral - a julgar pelo ensaio acompanhado pelo Estado - esse Concerto que estreia amanhã com Dinho, Rodrigo, Fabiana, Karen Menatti e Thais Pimpão no elenco, os músicos Aloísio Oliver, Mauricio Damasceno e Jonathan Silva - autor de muitas canções da trilha - e ainda com Silvana Marcondes como figurinista. Do Homem Ao Poeta As penas acinzentadas e as asas e cauda pretas da patativa, pássaro cantador do Nordeste brasileiro, batizaram o poeta Antônio Gonçalves da Silva, conhecido como Patativa do Assaré, que faria 100 anos em 2009. Filho de agricultores, Patativa nasceu no dia 5 de março de 1909, em Serra de Santana, Assaré (CE). Poeta autodidata, com apenas seis meses de estudo formal ganhou projeção em todo o Brasil, nos anos 50, por ocasião da regravação de Triste Partida, toada de retirante gravada por Luiz Gonzaga. Desde cedo, o menino Antônio Gonçalves da Silva teve que se dedicar à roça, espaço síntese de labor e criação, onde natureza e cultura dialogavam e se ofereciam como seu laboratório. Ainda criança, começou a perder a visão, vítima de uma doença chamada por ele de ?mal dos olhos?. Mesmo assim, curioso de tudo o que havia em volta e além, o pequeno Patativa ensaiava seus voos versejando enquanto carpia. A idade adulta chegou com o mesmo cenário e com as mesmas dificuldades, porém com voos mais altos: poesia difundida em livros, em discos, em filmes e objeto de análise em universidades e ainda uma legião cada vez maior de admiradores e fãs. Sua poesia denunciou e denuncia as injustiças sociais que, somadas ao clima pouco favorável do sertão, fazem a tragédia cotidiana do povo sertanejo. Mas o Poeta também falou do amor, do vício, contou histórias, tratou enfim da experiência humana. Morreu no dia 8 de julho de 2002 em Assaré. CIA. DO TIJOLO

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