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Resnais faz reflexão leve e divertida

Beijo na Boca, Não! é o mais inebriante trabalho do diretor de Hiroshima

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Nos anos 60, Joseph Losey usou um recurso da comédia de boulevard - as portas que abrem e fecham, o entra e sai de personagens - para criar o universo concentracionário e claustrofóbico de uma de suas obras-primas, Cerimônia Secreta. Alain Resnais apropria-se agora do mesmo recurso vaudevillesco, mas o faz com outro objetivo. Beijo na Boca, Não! é o mais leve - inebriante como champanhe - filme do diretor de clássicos como Hiroshima, Meu Amor e O Ano Passado em Marienbad. Resnais baseou-se numa opereta de 1925, de André Barde e Maurice Yvain. A história é de vaudeville, sobre este casal que recebe amigos, um deles é o ex-marido da dona da casa (mas o atual marido não sabe) e entre os demais convidados estão dois pretendentes da personagem de Sabine Zéma, mais uma garota (Audrey Tautou) que ama um deles. Trailer de Beijo na Boca, Não! A trama é feita de quiproquós que tratam superficialmente de temas que eram relevantes em 1925, entre as duas grandes guerras - e continuam relevantes hoje. A exigência da virgindade por parte dos homens, as relações entre a França e os EUA, as vanguardas artísticas, a sedução, tão fascinante quando fascisante - existe a palavra? -, das grandes indústrias e das teorias científicas. Mas Resnais não conta sua história, sob múltiplos aspectos frívola, com a preocupação de tecer uma reflexão ?séria? sobre a arte e a vida. Ele quer ser leve. Uma de suas referências foi o Ernst Lubitsch de A Viúva Alegre, opereta que ficou célebre e faz parte da história do cinema (com a dupla Maurice Chevalier e Jeanette McDonald). Como disse o próprio Resnais sobre Beijo na Boca, Não! - como nos melhores vaudevilles, ?les portes claquent?, as portas estalam/batem, mas ele queria que as entradas dos atores e personagens fossem retumbantes e as saídas, discretas. Eles não saem. Esfumaçam-se, desaparecem em cena, segundo velhas trucagens (que foram aprimoradas digitalmente, é verdade). A contribuição de Resnais foi tão grande para a linguagem cinematográfica - por sua maneira de trabalhar a montagem e usar tempo e espaço -, que a gente quase se esquece que Hiroshima e Marienbad são filmes sobre histórias de amor. Os produtores encomendaram a Resnais um filme sobre a bomba atômica, mas ele se desembaraçou logo da encomenda e se concentrou na história deste amante, em Hiroshima, que age feito psicanalista, revolvendo o inconsciente de uma mulher para que ela lhe conte a outra história, em Nevers, pois foi lá que ele sente - ou sabe - que quase a perdeu. Em Marienbad, o homem é de novo persuasivo, tentando convencer esta outra mulher de que eles tiveram um encontro no ano passado. As vanguardas, o dinheiro, o novo poderio norte-americano, tudo está em Beijo na Boca, Não!, mas a história, de novo, é de amor. Pierre Arditi é o marido que tem uma teoria científica sobre o amor. A mulher deve ser pura, como os metais em qualquer liga. Se ela chega virgem ao casamento, se não existe outro, nem outros, a liga será perfeita. Sabine Azéma lhe escondeu o casamento anterior, porque, tendo ocorrido nos EUA, não é válido na França, mas o ex aparece na forma de sócio em potencial, que poderá aumentar a riqueza do marido. Sabine é cortejada por um artista de vanguarda e por um pequeno burguês ridículo. O primeiro é amado por uma herdeira que frequenta a casa e Sabine tem uma irmã, que, naturalmente, conhece seu passado (e ama o ex-cunhado). Seis personagens num jogo de identidades cujas regras Resnais subverte. Sete - pois há também a concièrge que detém as chaves da garçonnière em que se passa o ato final, quando todos os casais se encontram, como em todo bom vaudeville, na antessala que se comunica com o (ou os) quarto. Em Amores Parisienses (On Connait la Chanson), Resnais inventou seu cinema cantado. Em Coeurs, que no Brasil se chamou Medos Privados em Lugares Públicos, questionou os sentimentos contando a história de outros seis personagens. (Resnais, como Pirandello, andará à procura de personagens?) Coeurs - literalmente, Corações - investiga receios que se escondem por trás de conveniências sociais. Não será isso que Pierre Arditi tenta esconder por trás de sua teoria do amor em Pas Sur la Bouche? Os seis personagens e suas histórias cruzadas são construídos com o rigor que se associa ao autor, mas ele nunca foi tão leve e solto. O sétimo personagem, a concièrege, interpretada em travesti por Darry Cowl, é o supremo clin d?oeil (piscar de olhos) desta história em que nada é tudo. O próprio Resnais, aliás, conta uma história curiosa como a de Benjamin Button em outro grande filme que estreia hoje nos cinemas brasileiros. Seu projeto, em 2002, era um filme ambicioso, que ia realizar com roteiro de Michel Lebris, mas as coisas começaram a dar errado. Ele teve problemas com o roteiro, com os produtores, com os atores que queria escalar. Resnais chegou a pensar numa ideia que sempre o fascinou - fazer um filme sem roteiro. Na verdade, ele gostaria de refazer, plano a um plano, um filme. Havia escolhido Trágico Amanhecer (Le Jour Se Lève), da dupla Marcel Carné/Jacques Prévert, com Jean Gabin e Arletty, de 1939, mas aí Gus Van Sant fez a sua versão clonada do cult Psicose, de Alfred Hitchcock, e Resnais se desinteressou do assunto. Quando não tinha projeto nenhum, surgiu Beijo na Boca, Não! Em mais de uma entrevista, quando o filme estreou na França, há quase seis anos, Resnais falou do prazer que lhe proporciona sua imensa coleção de DVDs. Ele continua não perdendo os novos filmes de Eric Rohmer, Jacques Rivette, Arnaud Desplechin e M. Night Shyamalan - ama especialmente Corpo Fechado -, mas para Pas Sur la Bouche voltou a seus clássicos. A opereta clássica de Lubitsch, comédias de Leo McCarey. Era importante que os atores - modernos por excelência - reaprendessem a se mover em cena, a descer uma escada. Como construção intelectual, a arte de Resnais sempre celebrou o artifício - de desmontar histórias tradicionais de amor, embaralhando tempo e espaço para recontá-las. O artifício agora é total. Tudo é falso em Beijo na Boca, Não!, menos a grande arte de Resnais. Ele continua verdadeiro, e perfeito, como quase sempre. Serviço Beijo na Boca, Não! (Pas Sur La Bouche, França/ 2003, 115 min.) - Comédia. Dir. Alain Resnais. 12 anos. Cotação: Ótimo

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