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Reflexão sobre serenata inacabada

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Por Redação
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Formado por duas remontagens (Serenade, de Balanchine, e Les Noces, de Bronislava Nijinska) e uma criação (Entreato, de Paulo Caldas), o segundo programa da São Paulo Companhia de Dança faz soar uma sirene de alarme. Estreado no início de novembro no Teatro Alfa, e reapresentado de hoje a domingo no Teatro Sérgio Cardoso, pede uma reflexão sobre os entendimentos de dança que pratica. Realizar remontagens de coreografias históricas do peso das duas que foram escolhidas com um grupo sem perfil próprio, seria mesmo muito arriscado. Dificilmente escaparia da situação constrangedora que se vê em cena: a companhia, que nasceu para ser o exemplo da excelência em dança profissional, ficou parecendo um grupo de alunos dedicados fazendo as provas de fim de ano da sua escola, para as quais ensaiou "obras sérias" com todo o empenho. Como poderia ser diferente se são jovens com rarefeita experiência profissional aos quais está sendo pedido que dêem conta de dançar propostas artisticamente distintas em um curto período de tempo? A escolha desse programa se baseia na compreensão do corpo como um suporte no qual se pode pendurar informações de qualidades diferentes, confiando que as singularidades serão mantidas. Sucede que no corpo as informações que chegam reorganizam as que lá estão, as transformam e se transformam. O corpo demora para fazer danças que pedem usos distintos do movimento. O corpo não muda de linhagem artística com uma troca de figurino. Serenade, cuja data de criação é 1934, foi dançada duas vezes naquele ano. Em White Plains (9 de junho), e em Connecticut (6 de dezembro). O programa-livro que a SP Cia. de Dança publica para cada novo repertório escolhe ignorar essa informação, que consta do mesmo livro que foi usado como fonte para o que está nas suas págs. 49-50 (Complete Stories of the Great Ballets, assinado pelo próprio Balanchine e por Francis Mason). Ao assumir 1935 como data, seguindo algumas publicações que também não zelam por preservar a história, perdem a oportunidade de explicar que a sua intenção foi a de deixar claro qual montagem de Serenade é tomada por referência, tornando a informação imprecisa. Pois Serenade teve diferentes produções e as primeiras nem usavam a partitura integral de Tchaikovsky que dá nome ao balé (Serenade in C Major for String Orchestra). Embora tenha sido criada para alunos, os primeiros de Balanchine nos Estados Unidos, dançar Serenade não é muito simples. Há toda uma precisão de pés e de braços bem típica de Balanchine, difícil de ser realizada por quem não tem familiaridade com a sua obra - como é o caso da SP Cia. de Dança. Les Noces, de Nijinska, cai melhor, mas lhe falta peso. A longa cena dos noivos parados, com o braço cruzado sobre o peito, escancara uma fragilidade de interpretação que vai atravessar toda a montagem. Muito boa a escolha de Paulo Caldas do título Entreato para batizar a sua coreografia. Afinal, ela está no meio das duas remontagens. Mas, quando a remete ao filme Entr?Acte, de René Clair, por meio de uma imagem que de lá retira, acerta mais ainda. Interessado, desde sempre, na relação do corpo com a luz, acabaria chegando à imagem como uma questão. Neste Entreato, a iluminação continua sendo uma peça tão fundamental que se torna protagonista. E cria uma artificialidade que merecia ser melhor explorada na sua latência cinematográfica. Silvestrin (o coreógrafo italiano que foi importado para o primeiro programa), Balanchine, Nijinska e Paulo Caldas têm entendimentos distintos sobre dança, por isso são tão diferentes as quatro obras que agora fazem parte da SP Cia. de Dança. Não seria possível esperar um bom desempenho técnico de uma companhia que reúne bailarinos que não haviam trabalhado juntos antes, que não vêm da mesma formação e que, em poucos meses, são postos para lidar com propostas artísticas diversas. O que preocupa não é o fato de a qualidade da sua dança não estar aceitável agora, mas sim a filosofia que está pautando a construção dessa companhia. A lógica que costurou a aquisição dessas quatro obras é que sugere que a busca de um perfil próprio não está na sua pauta, infelizmente.

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