Realismo e abstração estão em fotos dos anos 1950

Duas exposições, a do fotojornalista Luciano Carneiro e a do fotógrafo José Oiticica Filho, mostram duas vertentes da vanguarda fotográfica brasileira

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Foto do author Antonio Gonçalves Filho
Por Antonio Gonçalves Filho
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Dois expoentes da fotografia brasileira na década de 1950 ganham exposições em São Paulo em diferentes espaços: um realista e outro abstracionista. O primeiro, o cearense Luciano Carneiro (1926-1959), fotojornalista que se notabilizou por imagens da guerra da Coreia, publicadas na revista O Cruzeiro, é homenageado com uma exposição de 180 imagens pelo Instituto Moreira Salles (IMS), que será aberta neste sábado, 20, em sua sede paulistana. O segundo, o carioca José Oiticica Filho (1906-1964), pai do artista Hélio Oiticica e um dos pioneiros da foto abstrata no Brasil, ganha mostra individual na Galeria Raquel Arnaud, aberta na quinta-feira. Em ambos os casos, o cuidado técnico e o envolvimento com a história da fotografia ajudaram a construir imagens desestabilizadoras para a época.

Carneiro, animado com as ousadias estéticas de Cartier-Bresson e a coragem de Robert Capa, foi um dos renovadores do fotojornalismo em O Cruzeiro, que tinha em sua equipe nomes como os do fotógrafo piauiense José Medeiros (1921-1990). Contratado pela revista aos 22 anos, ele aproveitou os 11 anos de vida que lhe restaram cobrindo conflitos internacionais como correspondente de guerra, entre eles a guerra da Coreia e a revolução cubana.

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Curador da mostra com Joanna Balabram, Sergio Burgi reuniu tanto as fotos registradas na Coreia em março de 1951, quando Carneiro acompanhou o avanço da aliança sul-coreana e norte-americana, como as de julho do mesmo ano, época em que se deram os primeiros encontros para o armistício, em Kaesong. De todas essas imagens, a que define melhor o intrépido Carneiro é a da operação Tomahawk, em que 3 mil paraquedistas do 187.º regimento de infantaria norte-americano desceram sobre Munsanni para cortar a rota de retirada das tropas inimigas.

Burgi conta que o fotojornalista, também paraquedista, saltou com os soldados e conseguiu imagens que nenhum outro correspondente registrou. Além do momento exato da descida dos paraquedistas, imagem apocalíptica, Carneiro retratou Seul destruída e seus sobreviventes entre as ruínas, flagrou civis em fuga e registrou militares feridos ou mortos, sempre de perto, a exemplo de Capa. Por vezes essas imagens evocam as de Cartier-Bresson na China, pelo tom humanista definido pelo olhar que acompanha o desespero de refugiados em retirada, como observa Burgi, curador da exposição.

Carneiro também escrevia – e bem. Uma de suas reportagens em O Cruzeiro, feita em 1958, um ano antes de sua morte, mostra como viviam as mulheres russas em Moscou em pleno auge da Guerra Fria e em meio à corrida nuclear com os americanos. Um pouco antes de morrer, também registra cenas antológicas, como a do primeiro comício de Fidel Castro após a tomada de poder em Cuba – o comandante com uma pomba branca sobre o ombro.

O IMS tem dois conjuntos que totalizam 300 imagens do arquivo de Carneiro cedidas pela família do fotógrafo em 2012. Restauradas com precisão cirúrgica para a mostra atual, fotos do segundo conjunto (150), que incluem as da Coreia, já foram publicadas no livro A Hora e o Lugar (IMS, 2015). Burgi revela que tem um projeto de fazer outro. Material para isso não falta: Carneiro fotografou o Japão, o Egito, a Rússia e personagens como o pintor surrealista Salvador Dalí (na mostra). 

Oiticica. Mais conhecido como pai do artista visual Hélio Oiticica, o fotógrafo e também pintor carioca José Oiticica Filho (1906-1964) ganha a projeção que merece com uma exposição individual na Galeria Raquel Arnaud. Despertando a atenção da curadora de Fotografia do MoMA, Sarah Meister, que esteve esta semana em São Paulo, Oiticica Filho está representado na mostra por fotos que cobrem desde suas primeiras experiências, ligadas ao pictorialismo, até imagens abstratas mais radicais. A exposição tem como curadores Ricardo Sardenberg e César Oiticica Filho, neto do fotógrafo.

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O trabalho de Oiticica Filho, pioneiro no campo da abstração, deve-se, sobretudo, à ligação do artista com o fotocineclubismo e à erudição de um entomologista que, filho do filólogo, pensador e anarquista José Oiticica (1882-1957), tinha grande conhecimento das experiências fotográficas desenvolvidas no exterior. Pesquisa, segundo o curador Sardenberg, é a palavra que melhor define a ação artística de um fotógrafo estreitamente ligado à pintura que, inclusive, conduziu Hélio ao ateliê de Ivan Serpa (1923-1973), criador do grupo Frente.

O interesse de Oiticica Filho pela abstração geométrica e o construtivismo deriva justamente desse diálogo íntimo com a obra de Serpa, a ponto de ter feito uma releitura da obra do pintor carioca, exposta no piso superior da galeria, onde os curadores colocaram lado a lado as pinturas do fotógrafo e de seu filho Hélio, mais especificamente os trabalhos conhecidos como metaesquemas, caracterizados pela interpretação da obra de Mondrian. “Esses trabalhos revelam como ele se relacionava com as experiências estéticas mais radicais de seu tempo”, avalia Sardenberg.

No piso inferior, logo na entrada da exposição, estão fotos que ele fez nos Estados Unidos, no final dos anos 1940. “Elas revelam uma ligação com o pictorialismo e as imagens clássicas de Paul Strand e Edward Steichen”, diz o curador. Uma delas, reproduzida aqui, a do menino diante da árvore iluminada, mostra essa conexão pictórica atrelada à construção rigorosa de Moholy-Nagy. “Ele costumava dizer que não havia distinção entre fotografia e pintura, que eram a mesma coisa”, lembra César Oiticica Filho.

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Algumas das imagens exibidas na mostra derivam de uma experiência feita em 1955 pelo fotógrafo em Ouro Preto, quando ele fotografou detalhes dos muros desgastados da cidade histórica e, posteriormente, passou a trabalhar superfícies, registrando formações abstratas ao sobrepor vidro corrugado aos desenhos. “Seu processo era científico, classificatório”, conta Sardenberg, apontando um dos trabalhos, uma borboleta e seu casulo, foto que, ampliada, transforma suas asas num desenho abstrato. “Ele recriava aquilo que fotografava, trabalhando basicamente no laboratório sobre negativos ampliados e desenhos copiados e fotografados”, conclui.

Na exposição, existem vários exemplos de sua série Recriações, fotografadas em alto contraste, que impressionaram a curadora do MoMA. Presença ainda tímida em coleções internacionais, a história de José Oiticica Filho começa a mudar, acompanhando a do filho, que só teve sua primeira retrospectiva em 2010, no Itaú Cultural, lembra César Oiticica Filho. /A.G.F.

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