Ravel idiomático, Chopin sem derramamentos

Em recital na Sala São Paulo, pianista Dang Thai Son aliou virtuosismo a cuidadoso senso de estilo

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Por Lauro Machado Coelho
Atualização:

A decisão do vietnamita Dang Thai Son de dedicar a primeira parte de seu recital da semana passada, na Sala São Paulo, a Maurice Ravel - arriscada, pois esse não é um tipo de repertório com o qual o público está muito familiarizado - foi amplamente recompensada. Os seus Miroirs foram elegantemente idiomáticos, seja nos claros-escuros de Noctuelles, que evoca o vôo das mariposas, seja na desolada melancolia de Oiseaux Tristes. A fluidez aquática de Une Barque sur l?Océan, com sua ondulante melodia, e o espanholismo estilizado da Alborada del Gracioso - duas peças do ciclo que Ravel haveria de orquestrar - foram realizadas com uma enorme precisão de fraseado e clareza de articulação. E Dang encerrou a série com uma encantadora execução de La Vallée des Cloches, cuja leveza de toque e firmeza de linha melódica construiu lindamente a evocação da paisagem crepuscular em que ressoa, à distância, o som dos sinos. Grande variedade de métodos de abordagem caracterizou, no fim da primeira parte, a leitura das Valses Nobles et Sentimentales, ilustrando a extrema diversidade dessas miniaturas - também brilhantemente orquestradas, mais tarde, para um balé. O ritmo enérgico do Modéré Très Franc inicial contrastou com as meias-tintas do noturno Assez Lent, avec une Expression Intense (nº 2) e esta, com a caprichosa ondulação do Assez Animé (nº 4). Grande momento foi o apaixonado bitonalismo do Moins Vif (nº 7), antes da espetacular síntese temática que Ravel realiza no último movimento, o Épilogue Lent. Chopin foi o autor a que Dang dedicou a segunda parte de seu recital, dando igualmente provas da diversificada compreensão que tem do universo desse compositor. Na Polonaise em Dó Sustenido Menor Op. 26 nº 1, à energia do primeiro episódio, allegro appassionato, seguiu-se o tratamento meditativo que ele deu ao segundo, declamado com extrema simplicidade - a mesma simplicidade, a mesma forma direta e desadornada com que Dang executou as quatro primeiras mazurcas do op. 24, sem excessos retóricos, com aquele tom introspectivo que fazia Chopin - na época dos grandes virtuoses, de Hiller, de Thalberg, de Liszt - parecer "sem graça" a seus contemporâneos. Foi essa sobriedade, essa recusa sistemática dos derramamentos, que com tanta freqüência falseiam a natureza da música chopiniana, o que fez do conhecido Scherzo em Si Bemol Menor Op. 31 outro dos momentos memoráveis do recital. E mesmo quando, no centro da segunda parte, Dang executou o Andante Spianato e Grande Polonaise Brillante, de um virtuosismo meramente decorativo, o fez com um senso de medida que virou as costas ao exibicionismo barato e acabou valorizando o que a peça tem de mais interessante. Quanto àquela gente que, depois da última nota do programa, sai num deselegante tropel, para ganhar a corrida até o estacionamento, se eles tivessem tido um pouquinho mais de paciência, ouviriam a delicada peça de Mompou que Dang ofereceu em extra.

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