Quincy Jones, um Shakespeare da modernidade

Livro e vídeo gravado em Montreux consagram o talento do instrumentista, compositor, produtor e arranjador americano

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Por João Marcos Coelho
Atualização:

Quincy Jones completou 75 anos em 14 de março do ano passado. Mas os sinais mais visíveis das comemorações só saíram nos últimos seis meses. Primeiro, entre dezembro e janeiro, The Complete Quincy Jones - My Journey and Passions (Insight Editions, NY), sofisticadíssimo livro de arte que combina fotos, cartas, memórias e fac-símiles de tudo o que o rodeou: da agenda de gravações nos anos 60 até seu boletim escolar, da letra de We Are the World até a partitura com muitos autógrafos das 46 superstars que conseguiu botar no estúdio aquele dia. Veja trecho do DVD E este mês chega ao mercado internacional o DVD duplo Quincy Jones - The 75th Celebration (Eagle Eye Media), registro do show realizado em 14 de julho no Auditório Stravinski pelo Festival de Montreux, Suíça. A apresentação traz 30 das estrelas da música popular refazendo o inacreditável trajeto criativo de Q., como o pianista Herbie Hancock, o saxofonista James Moody, o guitarrista Lee Ritenour e o lendário gaitista Toots Thielemans; entre os cantores, Al Jarreau e Curtis Stigers, Petula Clark e até Mick Hucknall (do Simply Red). Pode citar qualquer músico, cantor ou compositor, mas Quincy é quem representa de modo mais abrangente a genialidade da música afro-americana tal como ela nasceu, cresceu e explodiu nos Estados Unidos no último século e meio. No jazz os deuses chamam-se Louis Armstrong, Duke Ellington, Charlie Parker, Thelonious Monk, Dizzy Gillespie, Charlie Mingus e Miles Davis. No blues, Robert Johnson, Bessie Smith, B.B. King, entre outros. Entre as cantoras, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Shirley Horn. Pode-se multiplicar a listagem citando Ray Charles, Stevie Wonder, a trupe toda da Motown, Michael Jackson, Eminem e Public Enemy. E deuses isolados como Frank Sinatra, por exemplo. Todos os nomes citados, porém, transitam num só gênero. Apenas um nome, nas últimas seis décadas, passeou pelas músicas populares sem dar bola para rótulos ou gêneros e saiu-se bem em todas elas. Consegue ser igualmente genial compondo e arranjando para big bands; fazendo trilhas sonoras, empunhando o trompete (até os anos 70), atuando como diretor artístico de gravadora, produzindo gravações. Clint Eastwood, velho amigo que assina o prefácio do livro, diz que "Quincy está sempre interessado no que está fazendo, mas também no que os outros estão fazendo, e sua grandeza está aí." Bono, que assina a introdução do mesmo livro, afirma: "O público não vai distinguir bem a sequência da música no século 20. Mas lembrará das gravações que Quincy Jones produziu, arranjou, compôs e/ou tocou. Clonagem? Ele será conhecido como um Shakespeare musical: será que um ser humano de carne e osso seria capaz de fazer tudo aquilo?" Uma pessoa destaca-se no documentário do segundo DVD: o filósofo Cornell West, formado em Harvard, professor em Princeton e um dos maiores ativistas da causa negra nas últimas décadas. Compreensível, já que West entende como poucos a verdadeira natureza da música afro-americana. "Como Ralph Ellison disse", escreve ele em artigo de 1982, "os afro-americanos tiveram liberdade rítmica, em vez de liberdade social, bem-estar linguístico em vez de bem-estar econômico." E diz ainda : "O impulso do espírito do blues afro-americano, com seus efeitos rítmicos e polifônicos e técnicas vocais antifonais, oralidade cinética e afetividade física, é a principal fonte da música popular no Ocidente." No livro, revelações surpreendentes de Quincy: "Viajar com os músicos da banda de Lionel Hampton era como frequentar uma ?traveling music university?." Na primeira turnê europeia, também nos anos 50, Q. percebe chocado: "Eles tratavam o jazz como forma de arte pura." Isso jamais entrou na cabeça de músico afro-americano algum. Tanto faz gravar com Miles Davis, Count Basie ou produzir o disco de Michael Jackson. Importa mais é estar antenado. Quando, por exemplo, lançou o disco Back on the Block, em 1989, poucos perceberam que ele conseguiu o milagre de refazer todo o trajeto das músicas afro-americanas em 60 minutos. Torceram o nariz para o rap que ele incorporava naquele momento, no drum?n?bass - sons hoje corriqueiros. Esse raro talento de se reinventar, chocando até mesmo os que o rodeiam, só dois músicos demonstraram: Miles Davis, com suas quatro revoluções estilísticas de dez em dez anos; e Quincy Jones. Além de Hampton, sua "universidade musical sobre quatro rodas", Quincy Jones encontrou tempo, no verão de 1957, para estudar com Nadia Boulanger, a mestra de dez entre dez compositores contemporâneos eruditos das gerações formadas entre as décadas de 1920 e 1970. Com ela, aprendeu uma lição definitiva e superobjetiva: "Há 12 notas, é tudo. Aprenda o que todo mundo fez com estas 12 notas, porque elas são as mesmas notas. Até que descubram uma 13ª, aprenda o que todo mundo fez com as 12."

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