Quem não é cultural?

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Por Marcelo Rubens Paiva
Atualização:

Tem um bairro no Rio chamado Rubens Paiva. É em homenagem ao meu pai, paulista, desaparecido político em 1971. Eventualmente, a família toma sustos, quando lê manchetes em jornais cariocas: Rubens Paiva sem transporte; Falta luz em Rubens Paiva; Enchente deixa Rubens Paiva isolado. Tem uma estação de metrô chamada Engenheiro Rubens Paiva. Minha mãe foi homenageada, na sua inauguração. Já li num jornal: Deu pane em Rubens Paiva. O Rio tem mais carinho pelos seus heróis de esquerda. A Linha Vermelha se chama João Goulart. São Paulo elegeu outros heróis. O primeiro ditador do regime imposto em 1964, Castelo Branco, nomeia uma estrada. O segundo ditador, Costa e Silva, um elevado. Meus primeiros passos foram dados na Alameda Tietê, Jardim Paulista, numa casa de classe média, que milagrosamente ainda está de pé, cercada pela ocupação desordenada no bairro. Minhas primeiras fotos? Estou na calçada em frente, fazendo três com os dedos da mão esquerda, sentado num triciclo. Alguém deve ter perguntado: "Quantos anos você tem, Papeco?" Papeco foi o meu primeiro apelido. Minha primeira lembrança? Eu estava com um carrinho de brinquedo na mão: um Fusca de metal, com engrenagens elaboradas. Devia ser alemão - sabiam como ninguém fazer brinquedos miniaturizados. Meu pai, neto de alemães de Hamburgo, era aficionado por tudo que vinha de lá. Cantava músicas folclóricas. Loiro, de olhos azuis, imitava a risada de um bávaro abobalhado. Chegou a morar um ano na Alemanha em 1949. Imagino que, diante do país devastado pela estupidez nazista, é que consolidou o horror por despotismos. Num gesto freudiano óbvio, ignorei o seu passado. Me lembro em detalhes. Eu, sentadinho de pernas cruzadas, na garagem de casa, com o martelo na mão, erguido. Coloquei o simulacro de Fusca no colo e refleti alguns segundos. Talvez tenha sido a minha primeira experiência com o pensamento dialético: "Todo real é racional?" Usava fraldas. Mas já pensava no meu ato, antes de praticá-lo. Não sou mais um ser alienado, diria Kant. Meus instintos estão dominados agora pela razão. Me lembro até hoje do pensamento circulando o meu cérebro, e de como a transição - estou agora civilizado, doutrinado, criado - me encantava. Devo ou não devo? Posso ou não posso? Quais as conseqüências da minha atitude que, eu sabia, seria repreendida? Eu tinha dúvidas. Talvez fosse a primeira manifestação do meu superego, engatinhando no meu inconsciente, prestes a provocar um dos meus primeiros sentimentos de culpa, me aconselhando: "Não faça, melhor não, para quê? Aonde você quer chegar?" Então, me vi sob trevas. Bati o martelo no brinquedo. Dei sucessivos golpes, com toda a força. Até arrebentá-lo. Emergia a alma de um facínora, resquício de algum gene fanático? Uma verdadeira guerra fria ocorria entre os meus neurônios. Eu, cérebro infantil, era um laboratório da luta entre razão e emoção. Terapeutas atuais e libertinos diriam que se manifestava uma personalidade de opção sexual dúbia, que recusava o papel de macho-que-gosta-de-carrinho, e que talvez meu pai deveria ter me oferecido não uma boneca, mas um presente neutro, como um porta-retratos. Sei muito bem por que violentei o lacre daquele objeto pueril. Pura curiosidade. Cheguei a brincar com o carrinho alguns minutos antes. Enjoei logo. O que me fascinou foi o jogo de roldanas e molas que dava para ver através da sua janelinha. Para desvendar os seus segredos, enfiei o martelo. Despedacei-o. Me esbaldei manipulando as rodinhas, porcas, cacos, descobrindo do que era feito e como. A qual grupo de alma doentia pertenço? Nasci assim ou sou fruto do ambiente? A verdade é que, lá atrás, se formava um ser que as novas gerações definem como "cultural". Já ouviu este termo? Tive espasmos, quando me disseram pela primeira vez: "Ah, você é do tipo cultural." Como se definissem a minha personalidade, na variante de estilos urbanos: o playba, o hippie, a paty, o nerd, o cultural... Imediatamente, pensei: E quem não é? Quem não vai ao cinema toda semana, não vai ao teatro, não lê um livro? Quem não tem a menor curiosidade em assistir ao próximo longa do Cláudio Assis, Heitor Dhalia, Beto Brant, Walter Salles, Fernando Meirelles? Quem não irá ver o filme do Jabor, da Laís Bodanzky, o documentário do José Padilha, o roteiro do Bráulio Mantovani ou Marçal Aquino? Quem consegue deixar de assistir ao próximo espetáculo do Aderbal Freire, Antunes Filho, Gerald Thomas, Felipe Hirsch, Mário Bortolotto, Parlapatões, Grupo Tapa, Latão? E às séries da HBO? Quem ignora um livro da Fernanda Young, do Mutarelli, Dalton Trevisan, João Paulo Cuenca, Dapieve, Contardo Caligaris? Quem deixa de acessar o blog do Xico Sá? Quem não abrirá um livro da coleção Amores Expressos, não irá à 28ª Bienal? Não vai aos Sescs, Sesi, Centro Cultural São Paulo? Como consegue?! Um grupo pichou as paredes do andar vazio da Bienal, na semana da sua abertura. Causou polêmica. Já haviam pichado a Belas Artes e a Choque Cultural. Danificaram obras com o alfabeto de gosto duvidoso, que para muitos suja a cidade. Também não me encantam os caracteres narcisistas. Mas houve uma reação sem sentido, ao apagarem as pichações no pavilhão do Ibirapuera. Se a Bienal do vazio propõe uma discussão sobre o valor comercial e estético da obra de arte, um grupo de delinqüentes ofereceu a sua intervenção e propôs a depredação. Foi uma resposta aos questionamentos atuais. Então, por que apagá-la? Como sei que você também é um cultural, convido para o lançamento do meu romance novo, A Segunda Vez Que Te Conheci, terça, 25/11, no Rio (Livraria Argumento - Leblon), ou segunda, 1º/12, em São Paulo (na Livraria da Vila, na Vila Madalena, até as 21h30, e depois na Mercearia São Pedro, até fechar). Só falta você não aparecer...

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