Que time é teu? Ou o eterno retorno do futebol

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Por Roberto DaMatta
Atualização:

O mês vai fechando com dois eventos. As punições bárbaras que acentuam o abismo entre a eficiência do mercado e o personalismo que dirige a mais absoluta inoperância das instituições públicas tradicionais, como o governo estadual e o Exército. E o encontro com um filme ancestral: o retorno das teses mais arcaicas (e, por isso mesmo, sempre presentes) sobre o destino do ''nosso'' futebol: desse ''jogo'' que, a despeito de nossos vaticínios mais pessimistas, passou de pobre a rico e de marginal a campeão absoluto do mundo. Meus netos forçaram minha volta ao futebol. Eles têm me permitido um fenômeno raro. Seguir, no melhor estilo antropológico da observação-participante, esse modo paradoxal de examinar a vida social - pois quem participa enxerga, mas não vê; e quem observa vê, mas não enxerga - a importância fundamental do ''futebol'' como esporte, jogo, metáfora de identidade e da vida, tal como concebemos essas coisas na nossa sociedade; e também e, sobretudo, como instituição cultural crítica na construção da masculinidade no Brasil. Faço essa afirmativa tranqüilamente porque tenho netas que acompanham os jogos, mas não se integram ao ''futebol'' como elemento englobador e agenciador de comportamentos, coisa que ocorre com os meninos que, além de gostarem do jogo e de ''terem'' times, praticam o ''futebol'' como um ''jogo de botão'' e como jogadores. Vejo nos meus netos, sobretudo no Eduardo e no Jerônimo, o gosto pelo futebol por meio, primeiro, de um ''time'' de sua eleição e, em seguida, pela fantástica (e pouco estudada) descoberta do ''futebol de botão'', que proporciona a experiência de ser a um só tempo jogador circunscrito às regras, torcedor onipotente, técnico com capacidade para realizar todas as substituições, patrão absoluto do plantel e, em algumas circunstâncias, Deus! ''Que time é teu?'', perguntam todos os brasileiros aos seus conhecidos, na gozação de uma ambigüidade fonética que transforma a pergunta num sonoro: ''Quem te meteu?'' A resposta para a pergunta-armadilha, sugestiva de uma feminilização que não tem lugar no campo do machismo nacional, é: ''Primeiro time é meu, segundo t''meteu!'' Ter um time é virar rolha para ''meter no outro'' a derrota que, na brasilidade malandra que marca a nossa paisagem cultural, significa ''comer'' ou englobar hierarquicamente o adversário que conosco está intimamente relacionado. Daí a metafísica rodriguiana do Fla/Flu, que teria começado na Bíblia, com a oposição entre Caim e Abel. Pois, no Brasil, os adversários não são seres autônomos e desconhecidos, como nos faroestes de John Wayne, mas são opostos e complementares hierárquicos como a mão direita e a mão esquerda. Cada qual tendo sua hora e sua vez (como mostram Machado de Assis e Guimarães Rosa) de saírem vencedores. Em Machado, o mundo é do patriarcado ciente de sua masculinidade, até que uma mulher lhe corte os cabelos e assim seja o elemento englobador da situação. Há, logo aprendemos, momentos do Fla e do Flu. Ambos necessários para o nosso reconhecimento do mundo. À escolha do time sucede a descoberta de uma lealdade pessoal, emocionalmente tonificada, que dribla a impessoalidade da dimensão jurídica e política do clube, colocando em plano exclusivo seus emblemas concretos e, com eles, os seus figurantes: os jogadores que o encarnam. Quando menino, o Fluminense era o Orlando (o ''pingo de ouro tricolor'', como o chamava o grande Oduvaldo Cozzi). Eis uma dimensão fundamental do sistema social brasileiro, um sistema que tudo reduz à escala palpável das pessoas (e dos compadres), de modo que o Estado vira governo de sicrano ou fulano; a economia vira o banco X ou Y; os clubes são times; e os times, jogadores. Esse estilo caracteriza o Brasil. O time de nossa escolha é o receptor de nossa primeira lealdade. Nenhum brasileiro que se preza muda de time. Em contraste com os políticos que, de modo amoral, fazem discursos de acordo com as torcidas e mudam de partido pelo bem do povo; o torcedor sabe que só pode ser povo por meio do fato de ''ser'' de um time. Por isso, ele não é um espectador, como os ingleses, mas um torcedor que mata e morre (dá ou come) durante uma partida. A relação com o time é absoluta e mais visceral. É, como mostra minha obra, uma visão da vida, ao mesmo tempo que é um método criar o ''outro'' num mundo idealmente feito de parentes e amigos. Quando eu, Fluminense, descobri, que papai era Flamengo, transformei meu genitor num ''outro''. Num estranho ou vizinho. Como é que meu pai podia ser desse time de fanáticos, de pretos e pobres; e não pertencer automaticamente ao ''meu'' tricolor, tantas vezes campeão e cheio de classe e nobreza? Patrões do futebol mundial, sofremos com o risco de não disputarmos uma Copa do Mundo. A coisa é impensável, mas se futebol é um talento que nos foi dado na criação do mundo, existe também o destino e, pior que isso, o acaso, ambos constitutivos da estrutura do ''jogo'' de futebol. Como fazer com que o provável e o determinado fiquem do nosso lado, eis a questão que o futebol trás de volta. Eis um tema central na construção de nossa identidade. (Enquanto isso, que o leitor fique em paz e me permita o honesto e merecido descanso com a coluna que, volta, queiram os poderes superiores, na quarta-feira, 6 de agosto.)

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