Quando o tempo passa

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Por Roberto DaMatta
Atualização:

The fundamental things, apply As time goes by... Herman Hupfeld A mulher velha cata as folhas que cobrem as pedras da entrada da casa. Para ela, aquilo era um cuidado. Para o marido - que a amava moral e imoralmente havia 50 anos - era mania de limpeza. Ele preferia o tapete de folhas mortas que lembrava a sepultura sem limpeza do filho perdido. Limpar, como sabem as lavadeiras que lêem a vida dos seus patrões na sujeira de seus lenços, camisas, calcinhas, fronhas e cuecas, é viver. Limpamos só para sujar de novo; o que dá uma medida límpida de como viver plenamente é ser consumido pelos extremos. Existimos todos entre o sujo e o limpo e entre a vida a morte. Ricos ou pobres, santos ou pecadores, doentes ou sadios, cidadãos comuns (geralmente responsáveis) e poderosos (freqüentemente irresponsáveis). Só os mortos estão limpos, embora sejam permanentemente sujos pelos vivos. Antes de virar esquecimento a lembrança daqueles que perdemos é uma sufocante sujeira. Toda hora tem folha caindo na entrada da casa e seria preciso cortar as árvores e suprimir o vento para detê-las. Mas a mulher velha ama o verde e o vento que, quando vem forte, arremessa as folhas ao chão. O vento derruba as folhas e a mulher tira, uma a uma, as folhas caídas no chão. Eles formam uma aliança. O vento existe só para que a mulher velha cate as folhas que ele derruba das arvores para que o marido veja nisso uma mania, enquanto ela diz que é uma antiga obrigação. Não tendo mais de quem cuidar, ela cuida da limpeza da casa velha, cujo dono é um marido velho que gosta de coisas velhas. O jovem vento, porém, que Deus sabe de onde vem, trás a novidade da sujeira que obriga a limpar. E limpar é pôr as coisas nos seus devidos lugares. Um marido veio com uma mancha de batom no lenço que usava no bolso de trás da calça marrom. O vermelho ficou velho e deu no lenço um sujo amarelo escuro, amarronzado. O motel imaginado pela mulher tinha a cor escura dos velhos dinheiros gastos com coisas preciosas que se vendiam barato. A mulher não falou nada. Bateu os olhos experientes de sujeiras no lenço, colocou-o carinhosamente no tanque debaixo de uma água corrente e límpida e, com muito sabão e a energia dos epiléticos em surto, esfregou e esfregou o lenço, apagando a mancha. Enquanto limpava, ela remoía o ciúme e o abandono que poluíam o seu coração. Quando o sujo saiu, ela pendurou o lenço na corda de secar e voltou para a sala. O marido tinha tomado banho, jantado e, de camiseta e bermuda via, com cara limpa e um sorriso alvar, a televisão. Tudo estava novamente no seu devido lugar. Exceto a entrada da casa, cheia das folhas mortas que o vento derrubava. - Envelhecer não é para mariquinhas!, disse-me num elegante restaurante de Manhattan, com voz firme e um olhar singularmente duro, minha saudosa e querida amiga Lita Osmundsen, na época, diretora da Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research, uma importante e próspera agência de pesquisas antropológicas. Eu participava de um infindável encontro sobre teatro e ritual, promovido pelo ilustre diretor, Richard Schechener, e inspirado nas idéias de Victor Turner; um tema em voga naqueles dias. E o pior é que eu, o antropólogo enquanto jovem, me considerava o máximo no assunto. Não prestei nenhuma atenção na frase que hoje - no momento em "o passar do tempo faz com que as coisas fundamentais demandem atenção" na minha vida, como diz a velha canção - entendo ter sido uma admoestação, no contexto de uma conversa sobre o futuro também como envelhecimento, uma coisa que, naquela época, simplesmente não estava nos meus planos. Hoje, acho que a sentença queria dizer mais ou menos o seguinte: Olha aqui, seu idiota enfatuado por si mesmo, se você tiver a sorte de passar dos 65 - e saiba que muita gente nem chega lá, tirando as eventuais doenças (pedra no rim, catarata, hiperplasia de próstata, artrites, pressão alta, varizes, etc.) e abstinências - você vive uma vida sem futuro. É isso mesmo. Na velhice (ou na chamada terceira idade que infelizmente também tem início, meio e fim!), você vai estar cada vez mais próximo da última vez que, com a primeira, formam o marco - como sugeriu Arnold Van Gennep - da reflexividade humana. A partir dos 70 anos, mesmo com ginástica e outros artifícios "mudernos", é complicado olhar para frente. Se o farol vai até lá, ele quase sempre ilumina a implacável placa de "rua sem saída"! Começam também as suspeitas de que o mundo é um lugar desconhecido. Dá-se uma terrível invisibilidade. Você é apenas visto como professor e doutor. Quase sempre, mais encadernado do que seus livros que ninguém leu. Há também a sensação de ter perdido alguma coisa. Você entra na loja e não acha o que procura. "Eu queria ver aquele paletó com dois botões..." "Isso, meu senhor, saiu de moda faz algum tempo"..., diz um vendedor jovem com um meio sorriso cretino na cara. O mesmo que dei para minha amiga naquele jantar em Manhattan.

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