Quando a noite cai sobre o amor

Em Mão na Luva, atores exibem preparo técnico incomum e evitam a tonalidade fácil do melodrama

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Por Mariangela Alves de Lima
Atualização:

Na ficção dos românticos, dos realistas e mesmo dos naturalistas o maior problema gerado pelo casamento fundado no contrato social era a manutenção do vínculo sem amor. Homens e mulheres sofriam horrores porque eram obrigados a sacrificar afetos verdadeiros ou partilhar o cotidiano e a cama com pessoas que não amavam. No século 20, quando os pares se reúnem sob a bandeira do amor livre, emerge um tema novo: as uniões que se desfazem enquanto os parceiros ainda se amam. E isso ainda é um grande mistério e, pelo menos na dramaturgia, uma dor recente. Em meados dos anos 60 do século passado, uma peça do dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho focalizava um desses combates entre amorosos travados na obscuridade noturna. O casal que discute uma separação em Mão na Luva uniu-se por força da atração mútua e também porque houve entre ambos, de início, a cumplicidade de ideais compartilhados. Isso bastou para a fundação de um lar. Demorou séculos, mas, por fim, moços e moças puderam viver juntos sem a obrigação legal, sem precisar da aprovação das instituições religiosas e sem ter que enfrentar o ostracismo social. Em contrapartida, a vigência dessa relação construída sobre os alicerces etéreos da afinidade e da atração sexual só tem para defendê-la dois corpos desarmados. E é sobre essa perspectiva do embate corporal que se organiza o espetáculo idealizado pelos intérpretes Isabella Lemos e Marcelo Pacífico. Na trama da peça de Vianna Filho, a união de quase uma década só se confronta com o espelho do seu próprio passado, ou seja, com o tempo idílico do namoro. Entrecortadas por flashes, a noite em que se discute a separação é uma sequência de movimentos de aproximação e distanciamento ritmados pela pulsação emocional das duas personagens. Cenas da memória separam os rounds de uma luta sem árbitros ou testemunhas, porque não há regras para limitar os golpes e defender os lutadores. O espaço é estreito e o tempo da ação denso, uma vez que em uma madrugada se atritam promessas e decepções acumuladas durante uma década. Ainda assim, os argumentos esgrimidos na briga constituem um repertório sem grandeza ou originalidade: por covardia, o rapaz traiu seus ideais, por comodismo a mulher foi complacente. Ambos escaparam desse mal-estar com infidelidades ocasionais. Não há, contudo, neste tratamento dado ao texto, a inflexão da queixa. É a tonicidade do diálogo corporal e verbal assumida pelos intérpretes do espetáculo que indica a dimensão da perda. Porque são ambos vigorosos, atentos e receptivos aos sinais do parceiro em cena, os dois intérpretes formam uma unidade em que não há ponto de fissura aparente. Estão ainda ligados e, na aparência, formam um amálgama cuja dissolução os diálogos anunciam, mas que não se realiza em cena. Mesmo quando se agridem, os encaixes são precisos e aparentemente naturais, tal como os combates estilizados na coreografia dos tangos. Assemelham-se nas roupas, assemelham-se na interação coreográfica e, por vezes, sugerem um organismo com um sistema sanguíneo único. Mais de 40 anos nos separam da data da escritura da peça e os participantes do Núcleo de Estudos do Tapa (orientado por Guilherme Sant?anna e Brian Penido Ross) que conceberam esse espetáculo imprimiram nele a marca da própria geração. A moça que Vianna Filho trata ainda com cavalheirismo, porque é a personagem que sinceramente se importa com a traição aos ideais, é agora uma força equilibrada no enfrentamento físico e dialógico e o espetáculo sugere que, sendo tão forte quanto o homem, é igualmente responsável por ter-se omitido. Vista pelo crivo da experiência contemporânea, quando a ideologia parece assunto morto e enterrado, a discussão ética que a peça propõe é inescapável. Além dos espetáculos que produz com elenco próprio, o grupo Tapa vem formando diretores e intérpretes em um processo de experimentação contínua de textos de dramaturgos brasileiros ou peças de autores estrangeiros raramente encenados nos nossos palcos. Até o momento, nenhum desses trabalhos de investigação de novos procedimentos e formação entrou em cena com as costuras aparentes do aprendizado escolar. Isabella Lemos e Marcelo Pacífico veem sob um ângulo bem definido a peça que escolheram, representam com imagens bonitas e preparo técnico incomum as rápidas mutações do texto e, desde o primeiro momento, seguram com rédea curta a emotividade das personagens para evitar a tonalidade fácil do melodrama. Serviço Mão na Luva. 80 min., 14 anos. Viga Espaço Cênico (74 lug.). R. Capote Valente, 1.323, 3801-1843, 3.ª a sáb., 21 h; dom., 19 h. R$ 10/R$ 30. Até 15/2

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