Psicanálise e filosofia dialogam na Discurso

Fundada em 1970, publicação da USP homenageia Bento Prado Jr. e discute Freud, Lacan e Deleuze

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Por Francisco Quinteiro Pires
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Uma das mais importantes revistas filosóficas do País, Discurso (R$ 38, 360 págs.), feita pelo Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), chega à 36ª edição realizando o diálogo entre psicanálise e filosofia. Agora ela é editada pela Alameda Casa Editorial, que lhe deu um novo projeto gráfico para conter ensaios densos e rigorosos. O encontro entre psicanálise e filosofia é mais um fruto da publicação que nasceu em 1970, durante a ditadura militar, e que está calcada na proposta de difundir não só a produção teórica dos professores da USP, mas as reflexões diversas sobre cultura sem se submeter a nenhuma corrente ideológica ou linha filosófica. Dos 16 textos, que abordam a obra de autores clássicos, como Freud, Lacan e Deleuze, destacam-se Às Voltas com Bento Prado, do crítico literário Roberto Schwarz, e Antígona: Heroína da Psicanálise?, de Philipe van Haute, professor da Universidade de Nijmegen, na Holanda. Haute argumenta que Jacques Lacan (1901-1981) vê a personagem Antígona, que dá nome à peça de Sófocles, como dona de uma significação que serve de paradigma para determinar o foco da análise sobre essa tragédia grega do século 5 a.C. Por considerar Antígona a única e verdadeira protagonista, Lacan afirma que em torno dela devem ser formulados os sentidos da peça sofocliana. De acordo com a interpretação do psicanalista francês, as tragédias gregas não são a exposição de ações sucessivas, mas um lugar onde as verdades do ser e do desejo ficam visíveis. Lacan lê Antígona dentro de um contexto filosófico, sob a perspectiva da manifestação da verdade do ser: a personagem que se arrisca ao desafiar o rei Creonte, o qual não permite o enterro de Polinice - irmão de Antígona -, revela a verdade do desejo inconsciente. Haute diz que, ao negar qualquer lógica ou ética conseqüencialista, segundo a qual a ação humana deve partir de modelos preestabelecidos do que é bom e correto, Antígona está além do mundo cotidiano familiar. Ela renuncia aos bens mundanos, ao que possa uni-la ao mundo - a maternidade, os familiares e a própria vida - para rogar pelo enterro do irmão, acusado de traidor. ''''Desse modo, seu desejo é direcionado para aquilo que escapa à lei do significado'''', escreve Haute. Por confundir as categorias de bom e mau, Antígona desorienta, e sobre ela se inviabiliza um julgamento baseado em critérios do cotidiano. Além de tratar de temas cruciais à psicanálise, Lacan quer mesmo é lançar luz sobre a essência da tragédia grega, afirma Haute. No primeiro texto de Discurso, em homenagem a Bento Prado Jr., que faleceu em janeiro deste ano, Roberto Schwarz escreve sobre o perfil intelectual do filósofo, capaz de unir uma razão rigorosa a um sólido humanismo, em benefício dos dois. Schwarz lembra uma cena vivida numa madrugada com Bento Prado, reveladora do caráter humanista do colega. ''''Tendo bastante de príncipe, ele não se achava melhor do que ninguém. Num fim de noite, quando os bares decentes já haviam fechado, ele me arrastou para um boteco atrás da Praça da República, onde sua atenção se fixou na munheca fechada e nas unhas sujas de um pobre homem adormecido, que por um bom momento resumiram para ele a angústia da existência.'''' Apesar de ter nascido no seio da elite, Bento Prado Jr. tinha absoluto respeito pela desgraça.

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