Prosa contra pressão da sociedade arcaica

Afegão Atiq Rahimi faz seu manifesto em Pedra-de-Paciência

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Por Redação
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Detentor do mais prestigiado prêmio literário francês, o Goncourt do ano passado por Syngué Sabour: Pedra-de-Paciência (Estação Liberdade, 152 págs., R$ 30), o escritor e cineasta afegão Atiq Rahimi fez de seu livro um manifesto silencioso contra o chauvinismo. Na origem desse romance, que despreza a linguagem realista, ele usa a prosa poética para narrar a relação de uma mulher com seu marido em coma, baleado na cabeça durante a guerra civil no Afeganistão. Essa, porém, é uma história livremente inspirada por fatos reais, a da poeta Nadia Anjuman, que há quatro anos convidou o autor do livro e diretor de filme Terra e Cinzas para participar de um festival literário em Herat, no Afeganistão. Tragédia irreparável. Pouco antes de viajar, Rahimi recebeu um telegrama cancelando o encontro. Nadia havia sido espancada pelo marido até morrer, aos 25 anos. Em estado de choque, o companheiro tentou injetar gasolina nas veias. Rahimi conta que, inconsolável, foi buscar na cidade afegã uma resposta para a bestialidade do gesto. Por que um homem espancaria sua mulher? "Por motivos familiares", segundo justificava o telegrama? Que tipo de núcleo paranoico poderia levar um homem a matar a esposa por conta de sua independência intelectual, que a fez produzir poemas denunciando a opressão feminina no Afeganistão? Como enfrentar uma sociedade arcaica que se recusa a ouvir a voz da modernidade? Eram muitas as perguntas e insuficientes as respostas. Rahimi, ao se aproximar do assassino, teve compaixão dele. Lá estava diante do escritor um homem destruído pela pressão familiar e por uma sociedade patriarcal. "Tive vontade de ser uma mulher para conversar com ele", diz Rahimi, em entrevista ao Estado. Como não era o momento nem o lugar para isso, o escritor tomou, simbolicamente, o lugar da mulher que vela o marido em Pedra-de-Paciência. O título original, Syngué Sabour, faz menção a uma pedra usada por peregrinos como um muro das lamentações compacto e portátil, que recebe suas dores e lamentos. É assim que a mulher do livro chama o marido. À espera de um milagre que traga seu homem de volta à vida, ela faz revelações íntimas que jamais teriam saído de sua boca se o marido não estivesse inerte, vegetativo, a seu lado. Em certo sentido, é uma espécie de Fale com Ela, o confessional filme de Almodóvar, transformado em Fale com Ele. Rahimi, cineasta e cinéfilo, viu o filme, mas não estava pensando nele ao escrever seu livro, esclarece. De fato, há um abismo entre a retórica de Almodóvar e a de Rahimi, que não é feminista nem sexista. "Como falo invariavelmente do Afeganistão, o conflito está sempre presente e, sabemos, as mulheres e as crianças são as primeiras vítimas de uma guerra." Em seu primeiro livro lançado aqui, transformado no tocante filme Terra e Cinzas, uma criança erra por um lugar árido do Afeganistão com o avô, que espera uma carona que o levará à mina onde trabalha o filho. Sua missão é comunicar a ele a morte da mulher e de toda a família durante a guerra. Não sabe como dizer isso. Faltam palavras aos personagens de Rahimi, cuja função é justamente inventar metáforas para suportar o real. "Isso, porém, não é difícil para alguém que segue a tradição poética persa", diz. Exemplo disso é o seu livro anterior lançado em 2003, As Mil Casas do Sonho e do Terror, em que Cabul se transforma num labirinto mergulhado nas trevas. Rahimi busca uma correspondência poética que possa fazer frente à truculência dos talebans. "Não é possível dizer que exista uma tradição romanesca no Afeganistão, então é preciso buscar na antiga e rica poesia persa uma referência", explica, justificando seu engajamento político com uma frase de Camus: "Como dizia ele, não é o escritor que é politizado, mas a realidade que o faz embarcar na história, seja ela a de Auschwitz ou a de Cabul." As sucessivas crises políticas e invasões do Afeganistão ainda vão render muitos livros, prevê Rahimi, que se prepara para rodar um novo filme, provavelmente baseado em seu último livro. Se tivesse de resumir a uma única palavra o que caracteriza o comportamento do povo afegão, diria que essa é a curta e pesada culpa. Lembra que por isso O Caçador de Pipas, de seu conterrâneo Khaled Hosseini, fez tanto sucesso entre o público. "Infelizmente, essa culpa não atinge os homens públicos do Afeganistão", observa. "Se eles sentissem o remorso do garoto que trai seu melhor amigo no livro de Hosseini, nossos problemas já teriam chegado ao fim."

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