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Profeta da web, refém do presente

Estudos apontam afinidades com a rede que tem dele 3 milhões de referências

Por Leyla Perrone-Moisés
Atualização:

Tem sido apontada a afinidade do mundo criado por Borges com o universo da web. Dois ensaios excelentes foram escritos a esse respeito, e coerentemente, colocados online. Douglas Wolk, em Webmaster Borges (www.salon.com), diz que Borges profetizou a internet. A rede seria o labirinto ou O Jardim de Veredas Que Se Bifurcam; o Microsoft Internet Explorer, o Zahir; o comércio eletrônico, A Loteria na Babilônia; as histórias infinitas e imbricadas, hipertextos ou links. Wolk confessa, por fim, que depois de ter encontrado essas afinidades ficou obcecado por elas e, finalmente, teve de se consolar com as palavras de Pierre Menard: "Não há exercício intelectual que não seja finalmente inútil." Christophe Rollason, em Borges ?Library of Babel? and the Internet (www.themodernword.com/borges), também considera a biblioteca borgiana como uma prefiguração da internet. O artigo parte de uma observação feita por Ignacio Ramonet, editor de Le Monde Diplomatique: "Como na Biblioteca de Babel, muitas informações se encontram na rede, com todas as suas variantes e aproximações; nada garante a veracidade dos dados; um boato e uma informação se equivalem!" Rollason estende a comparação, observando que os "homens da biblioteca" seriam hoje os cibernautas. Otimista, ele acha que a internet permite escapar do pensamento único, da ortodoxia, e que Ramonet sofre do "complexo profissional", que consiste em lamentar que a informação saia do controle dos jornalistas e intelectuais. Conservando apenas como pano de fundo a instigante comparação da internet com a Biblioteca de Babel, dispus-me a percorrer o território borgiano da web, procurando avaliar em que medida a rede pode contribuir para ampliar o conhecimento de um escritor e de sua obra. Atualmente, as referências a Borges somam 3.050.000! Sem desanimar, fui passeando de entrada em entrada. Como cada entrada remete a outras, comecei a aplicar aquilo que Borges chamou, na Biblioteca de Babel, de método regressivo: "Para localizar o livro A, consultar previamente um livro B que indique o lugar de A; para localizar o livro B, consultar um livro C, e assim até o infinito..." Corri então o risco de acabar como o narrador do conto, que "em aventuras como essa prodigou e consumiu seus anos". Os portais e páginas disponíveis podem ser classificados por categorias, dos mais restritos aos mais amplos: blogs em que há referência ao autor; páginas biobibliográficas; páginas anunciando livros, em geral com possibilidade de compra; entrevistas com o escritor ou reproduções de textos seus; coletâneas de citações; artigos sobre ele; anúncios de conferências ou simpósios borgianos em várias partes do mundo; páginas de artistas inspirados por sua obra; páginas didáticas interativas preparadas por professores (testes); portais de centros de pesquisa exclusivamente consagrados ao escritor. Encontrei algumas coisas curiosas. O portal catalão www.barcelonareview.com traz um "Questionário Borges" com direito a prêmio. Eis algumas das perguntas, com respostas de escolha múltipla: "Em que consistiu a colaboração de Borges com Adolfo Bioy Casares? - R: a) redigir um anúncio de iogurte; b) escrever um conto a quatro mãos; c) escrever letras de tangos." Ou: "Qual era o passatempo da mãe de Borges? - R: a) tocar piano; b) criar canários; c) filatelia." Há outras perguntas mais refinadas, mas responder a todas elas seria uma ocupação ociosa como tocar piano, criar canários ou colecionar selos. Nesse saco de gatos, quem tem tempo e paciência pode encontrar eventualmente alguns tigres. Os portais de artistas visuais que se inspiram em Borges reservam boas surpresas. Ver, por exemplo, www.thesecretbooks/com. Sobre o autor e a obra, o melhor portal é o do "Jorge Luis Borges, Center for Studies and Documentation", criado pelos professores argentinos Ivan Almeida e Cristina Parodi na Universidade de Aarhus, Dinamarca, e depois transferido para a Universidade de Iowa (www.uiwoa.edu/borges). Esse portal é não apenas uma fonte indispensável para o estudioso de Borges, mas um modelo de portal literário acadêmico, tanto pela riqueza de informação quanto por sua concepção, que otimiza os recursos da internet. Pode ser acessado em inglês, francês ou espanhol. Além desse, há um outro grande portal intitulado "The Garden of Forking Paths", consultável apenas em inglês e mantido pelo nova-iorquino Allen Ruch (www.themodernword.com/borges). É um portal mais lúdico do que o anterior. O design é mais elaborado, tem numerosas e belas fotos. Oferece também a audição de gravações do escritor e de músicas nele inspiradas, além de uma seção dedicada aos filmes feitos a partir de sua obra. O portal não apenas tem Borges como objeto, mas assume seu estilo. Na introdução, um guia do "jardim" mostra ao visitante um lago, e o adverte de que se ele "o contemplar por tempo demasiado, corre o risco de mergulhar em seu reflexo e perder todo sentido de si mesmo". Uma página de citações sugere que estas, "num outro universo, são provavelmente receitas ou instruções para se construir uma bicicleta". Outra página, uma "prateleira virtual", contém "os volumes que Borges nunca escreveu". Há um outro endereço de interesse para os pesquisadores: o da Colección Jorge Luis Borges da Fundación San Telmo, de Buenos Aires, fundação criada em 1980 por Marión e Jorge Helft, que mantém um arquivo sobre a vida e a obra do escritor (manuscritos, cartas, fotografias, gravações, etc.), consultável através de um banco de dados. O endereço é: www.fst.com.ar Finalmente, as 3.050.000 referências a Borges na internet podem reduzir-se a três ou quatro, quando o objetivo é a pesquisa literária. Levando-se em conta o tempo imenso que se passa perambulando de um lugar para outro, perdendo-se em desvios e repassando muitas vezes pelo mesmo lugar, a experiência da internet é, de fato, semelhante à da Biblioteca de Babel. Mas, de todas as informações que nela podemos colher, as únicas valiosas são as que nos remetem de volta aos livros de Borges, nos quais nunca nos cansaremos de procurar o Aleph e o Zahir. Leyla Perrone-Moisés é professora emérita da FFLCH-USP e autora de Altas Literaturas e Inútil Poesia, entre outros

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