Por trás do grande imperador... uma condessa

Mary Del Priore narra história da Condessa de Barral, amante de d. Pedro II e testemunha de grandes acontecimentos do império

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Por Elias Thomé Saliba
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Monarquistas chegaram a descrevê-la como oportunista palaciana ou como eminência parda de d. Pedro II; republicanos associaram sua imagem de amante do imperador à própria decadência do já combalido império brasileiro. Estes controvertidos e superficiais retratos de Luísa Maria Portugal e Barros - mais conhecida como Condessa de Barral - parecem definitivamente superados após a leitura de Condessa de Barral (Objetiva, 264 págs., R$ 33,90), de Mary Del Priore, uma reconstituição viva da trajetória de uma das personagens femininas mais importantes da história brasileira no século 19. Calcada em inúmeras fontes, incluindo o inédito diário de juventude de Luisa de Barral, Mary Del Priore brinda os leitores com um narrativa sensível, fluente e cheia de empatia pela enigmática personagem. Com a morte precoce da mãe e do irmão, Luísa modelou-se no pai, Domingos Borges de Barros, um ilustrado que já percebia os vícios do sistema colonial. A educação europeia de Luísa incorporou toda a ambígua cultura do período romântico, forjando o perfil de uma mulher excepcional, que Mary define como "calculadamente virtuosa". Seguia princípios religiosos, jejuava, comungava, ia à missa; mas também era exímia dançarina nos bailes, aplaudia o teatro e lia histórias de adultérios descritas por George Sand e Flaubert. Recusou o casamento arrumado com o Marquês de Abrantes para casar-se com um aristocrata francês, Eugene de Barral. Foi aia das duas filhas de d. Pedro II e por quase dez anos conviveu com a família real, participando direta ou indiretamente de muitas das principais decisões imperiais. Uma mulher que soube catalisar toda a inextricável mistura de romantismo e o realismo do século 19. E isto talvez porque ela tenha sido testemunha privilegiada de muitos eventos conflituosos: estava na Bahia quando estourou a Sabinada, em 1937; morava na França quando eclodiram os dois conflitos mais sangrentos do século, as revoluções de 1848 e a Comuna de Paris em 1871. Mary Del Priore delineia um cenário das relações amorosas na época, do clima etéreo dos salões aristocráticos e dos rituais de elegância e de conversação que Barral soube tão bem dominar. Mas também da intensidade de todo um erotismo peculiar à época, na qual furtivos beliscões ou sutis pisadelas nos pés constituíam atrevimentos máximos e revelavam todo o fervilhar emocional dos relacionamentos. Foi assim entre d. Pedro II e a Condessa de Barral, que se tornaram amantes por muitos anos, embora de uma forma fugaz e intermitente. O encontro entre os dois não foi uma paixão fulminante e sim um desejo feito mais de promessas do que de prazer, numa época em que os amantes sonhavam antes com a imagem que faziam uns dos outros. A impressão que fica é que a Condessa de Barral não apenas atenuou bastante aquela insensibilidade sobranceira de d. Pedro, como o ajudou a liberar-se de muitas de suas tantas travas e gafeiras emocionais. Extremamente bem experimentada na vivência das pessoas que circulavam nas inúmeras cortes europeias, Barral mostrou-se, não raro, bem humorada e, nas entrelinhas, dando sempre algumas daquelas cutiladas que revelavam distanciamento crítico. Antes de d.Pedro ir à Bahia em 1859, forneceu, à seu modo, a "ficha" de toda a gente de lá: "Visconde dos Fiães? Um homem imoral com fingimentos de santo; Leopoldina Barreto? Mulher de péssimo comportamento, com o atenuante de ter um marido doido que anda nu em casa, não se lava e se porta como um animal; d. Maria Venceslau? Uma dengosa e, ainda por cima, casada com um maluco que ainda está esperando a vinda de d. Sebastião". Já por ocasião da lei do ventre livre, em 1871, ela tentou até corrigir o francês raquítico de d.Pedro e Isabel, alfinetando: "não seria menos matuto falar em ?lei dos recém-nascidos?(loi dês nouveuax nés) do que ?lei do ventre livre?, que mais parecia sinônimo de dor de barriga?". Como Barral foi aia das filhas de d. Pedro II, o contato com o imperador foi, de certa forma, publicamente justificado. Afinal, a educação das duas herdeiras deveria ser igual à que os meninos recebiam: aulas de francês, inglês, alemão, latim, história, química, geometria, botânica, desenho e geografia. Muitas e muitas vezes o imperador ia assistir as aulas, e, não raro, fazia também as suas intervenções pedagógicas. "O caráter das princesas deve ser formado tal qual convém a senhoras que poderão ter que dirigir o governo constitucional de um império como o Brasil" - assim d. Pedro justificava seu zelo pedagógico. Ardilosa justificativa que juntava necessidade pública ao gosto pessoal: fosse outra a aia, estaria o imperador tão ansioso em participar das aulas? De qualquer forma, temos uma narrativa deliciosa e uma biografia exaustiva que inclusive nos fornece perspectivas inéditas para a compreensão do universo palaciano na monarquia brasileira. A figura incrível da Condessa de Barral pode comprovar o quanto vale para a história brasileira aquele velhíssimo refrão - é certo que um tanto modificado pela versão de Groucho Marx: "Por trás de todo grande homem há sempre uma grande mulher. E por trás da mulher.. a esposa dele". Elias Thomé Saliba é historiador, professor da USP e autor, entre outros, de Raízes do Riso

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