Poeta é poeta, letrista é letrista, cada um em seu espaço

Mais importante mérito de Tatit é o de chamar as coisas pelos nomes corretos, em busca da essência das grandes canções

PUBLICIDADE

Por João Marcos Coelho
Atualização:

O primeiro e importante mérito de Luiz Tatit é o de, em definitivo, chamar as coisas pelos nomes corretos. Canção não é (só) música. Canção não é (só) letra. Canção é a arte de estabelecer elos entre uma e outra. Poeta é poeta, letrista é letrista. Versos de canções funcionam basicamente porque estão entremeados com a música. O mesmo acontece com a música das canções, que em si pode ser banal, mas isso não tem a menor importância. Graças ao trabalho teórico na USP e também artístico no grupo Rumo desde os anos 70, Tatit agora parece que reconhece e equipara a qualidade afim de canções tão díspares, no tempo e no espaço, como um lied de Schubert de 1820, uma canção de Cole Porter ou Gershwin dos anos 30 do século passado, e os nossos mais recentes Caetano, Chico Buarque, Tom Jobim e Cartola. Fiz de propósito esta escalação. Parto de um compositor como Schubert, que tinha todas as condições e ferramentas racionais para condensar em 3 ou 4 minutos gemas como Die Forelle; passo por Porter e Gershwin e os três primeiros brasileiros, mais ou menos apetrechados musicalmente, mas de certo modo conscientes em suas criações. Até chegar a Cartola, um sujeito que inconscientemente criou a partir da musicalidade da língua, das entonações e do modo "cantado" de falar. Enfim, de sua prosódia. O modelo da canção brasileira, segundo Tatit, fixou-se nas primeiras três décadas do século passado. Houve "não apenas uma evolução no tratamento da melodia longe das regras que determinam os compassos da partitura, mas também um significativo progresso na criação da letra, ao passo que esta se desvinculava da poesia escrita". Os compositores daqueles tempos não possuíam formação musical ou literária, mas "se sentiam capazes de alimentar continuamente o repertório dos cantores a partir de uma técnica que eles próprios acabavam de inventar: valiam-se de recursos prosódicos naturais de sua fala cotidiana para definir os contornos melódicos, mas ao mesmo tempo desenvolviam formas de fixação musical desses contornos, tentando adequá-los ao conteúdo da letra". No caso dos compositores objeto deste livro, a postura já é diferenciada. Eles possuem bom nível de conhecimentos musicais e literários. Conhecer as ferramentas, porém, não quer dizer que criações como as altamente sofisticadas Terra e Fora da Ordem de Caetano tenham sido produto consciente de um criador que, numa mesa cirúrgica, tenha operado letra e melodia. Mesmo Tom Jobim, de quem Tatit analisa Eu Sei Que Vou te Amar e A Felicidade, não criava com bisturi em punho. Nada impede, porém, que se analisem ou ponham a nu as estruturas mais íntimas das relações entre letra e melodia nestas canções. Análise quem sabe não seja boa palavra. Melhor é dissecação. Tatit coloca na mesa cirúrgica seis das mais belas canções populares brasileiras modernas, assinadas aos pares por Caetano Veloso, Chico Buarque e Tom Jobim. Acalmem-se os impressionistas. Dissecação demais não significa "matar" o texto, já alertava Roland Barthes trinta anos atrás. Este não é um livro de partida, mas de chegada. Mostra o pleno exercício da maturidade na prática de um método original de análise da canção popular. O segredo, a chave, está nos elos entre melodia e letra. Tatit sabe que seu livro é para poucos, para especialistas. Mas tem consciência, igualmente, de que, aos poucos, em ondas, tais análises acabam se espraiando em círculos mais amplos. Não faz mal que cheguem diluídas ao grande público. Passam, sobretudo, a fundamental ideia de que a canção popular é criação artística que merece análise teórica criteriosa. Acima de tudo, sabe que a obra de massa, para retomar a expressão de Barthes, "está submetida a uma lógica particular, diferente da lógica das obras clássicas". O modelo semiótico de análise por ele proposto é não só válido como adequado a esta lógica particularíssima da canção popular.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.