Picadeiro que rima amor com dor

Texto do início da carreira de Domingos Oliveira cai nas mãos da cia. Fraternal, que mistura gêneros com total habilidade

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Por Beth Néspoli
Atualização:

Leve lenço para a comédia A História de Muitos Amores porque é espetáculo para rir e também chorar. Mas não espere humor rasgado nem choro melodramático, apesar da ambientação circense e dos recursos da comicidade popular utilizados pela Fraternal Companhia, responsável pela montagem. "Não é uma explosão de riso", avisa o diretor Ednaldo Freire. Nem de choro. Tudo é mais sutil. Nessa peça, o circo é apenas espaço poético de uma fábula inspirada um tanto no cineasta Ingmar Bergman, outro tanto no dramaturgo Alfred de Musset, influências assumidas pelo autor Domingos Oliveira, que estará na estreia hoje à noite, para convidados. A montagem inicia quinta-feira sua temporada, grátis, no Teatro Popular do Sesi. Como assim? Domingos Oliveira no picadeiro? Parece mesmo difícil associar uma comédia ambientada num circo, imaginário ou real, com a criação artística desse cineasta de Todas as Mulheres do Mundo, que consagrou Leila Diniz, ou filmes mais recentes como Separações e Amores. Mas basta um olhar atento para detectar sua assinatura na forma como trata com nobreza e dignidade a dor do amor, jamais banalizada, mesmo nas cenas de encontros e desencontros em que predomina a leveza. E mais. O jovem cinéfilo abre ainda espaço para valorizar o amor pela arte, grandioso, e a lealdade intrínseca à amizade. Há uma despedida, viril e dolorida, entre dois homens apaixonados pela mesma mulher, de cortante lirismo. Domingos é cineasta e também dramaturgo e diretor teatral. Essa sua peça - a primeira encenada profissionalmente e por ele próprio dirigida em 1964 (leia abaixo) - foi ?descoberta? por Ednaldo Freire quando ainda atuava no teatro amador. A Fraternal surgiu em 1993 e, desde então, manteve uma parceria constante com Luis Alberto de Abreu, sempre na busca de sedimentar uma linguagem que pudesse ser chamada de Comédia Popular Brasileira . "Mas agora Abreu estava com muitos compromissos e decidimos dar um tempo. Diante disso, nossa primeira ideia foi visitar textos esquecidos da dramaturgia brasileira", conta Freire. Lembrou da peça do Domingos, de "sofisticada simplicidade", matéria-prima ideal para brincar com a linguagem há anos experimentada. "Tem apartes, triangulação, gags, toda a engenhosidade da linguagem cômica popular. E também a ingênua, o galã, personagens típicos e também arquetípicos, porque o prólogo já prenuncia a ambiguidade presente todo o tempo entre a representação e o real, entre o que é cena de circo-teatro e o que é vida dos integrantes do circo." Aiman Hammoud interpreta Portobello, personagem inspirado em Sérgio Britto, como conta Domingos Oliveira, no que ambos têm de amor profundo à sua arte. O circo é mambembe, a lona é furada, mas ele não o vende nem mesmo quando a oferta o permitiria comprar um ainda maior e melhor. Até o dia em que... Bem, não antecipemos a história. Fernando Paz interpreta o palhaço Pimpão que será o protagonista da fábula cara ao autor, da paixão que nasce e cresce sem que os envolvidos se deem conta. Edgar Campos faz o tipo cômico, o trapezista fortão que tem, digamos, uma lentidão de raciocínio, por quem é apaixonada a filha de Pimpão, interpretada por Luciana Viacava. Isadora Petrin (sim, ela é parente do ator Antonio Petrin, neta dele) e Marcio Castro encarnam respectivamente a advogada Gavião e o empresário que quer comprar o circo. Mirtes Nogueira é Ângela, a mulher que vai desestabilizar as relações e detonar toda a trama ao entrar para trupe. Alguém falou que o grupo trabalha com os recursos que já domina? Não é bem assim. Na atuação de Mirtes aparece o primeiro desafio. Quem acompanha as montagens da Fraternal sabe que ela faz sempre o papel da ?esquentadinha?, a mulher brigona. "Dessa vez eu não brigo, tenho de ser doce e terna. Nossa, foi difícil no começo, ainda é", conta a atriz. E tem mais. Há muito o grupo vinha se exercitando na linguagem narrativa. Cada vez mais os espetáculos ganhavam a forma de contação de histórias, feitas pelos atores diretamente para a plateia, intercaladas com cenas vividas. "É uma delícia essa novidade, o teatro dramático", brinca. O ensaio, acompanhado pelo Estado, faz pensar numa montanha russa. Ora o tom é francamente farsesco, ora é dramático e verdadeiro, ora profundamente lírico, ora beira o trágico, como no desfecho. Mas mesmo no ?grand finale? ainda ali há tempo para o autor puxar o tapete do público numa virada digna dos melhores truques circenses. "Nem o Domingos conseguiu executar o que ele escreveu para essa cena", conta Ednaldo. Mas a Fraternal vai tentar. "Vamos usar uma espécie de gancho chamado ?gato?, um instrumento náutico", diz Aiman. Nos barcos, ele é usado para mudar as velas de lugar, pode funcionar com a lona do circo. "Ainda não sabemos se vai dar certo, o público vai conferir na estreia", diz Ednaldo. Se a peça foi um fracasso na primeira montagem, em 1964, agora tudo pode mudar. "Não era uma obra engajada como se esperava na época", argumenta o diretor. Bem, há sempre algo de imponderável no teatro, mas, 45 anos depois, talvez esse texto tenha encontrado sua trupe e seu público. Quanto ao autor, esse cumpriu o vaticínio do crítico teatral Fausto Wolff que escreveu na época em análise do espetáculo sobre o jovem autor e diretor Domingos Oliveira: "Esse rapaz vai longe, se o circo não cair sobre sua cabeça."

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