Pesquisa revela como clássicos foram rejeitados

Cartas a escritores encontradas nos arquivo da editora Knopf mostram erros colossais de avaliação dos editores

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Por David Oshinsky
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No verão de 1950, a Alfred A. Knopf Inc. rejeitou os direitos da versão em inglês de um manuscrito holandês depois de receber um parecer especialmente negativo. A obra era ''''muito enfadonha'''', insistia o parecerista. Era ''''um registro monótono de brigas típicas de família, amolações triviais e emoções adolescentes''''. As vendas seriam reduzidas porque os protagonistas não eram familiares para os americanos e careciam de qualquer atrativo especial. ''''Mesmo se a obra tivesse surgido há cinco anos, quando o momento era oportuno'''', escreveu o parecerista, ''''não creio que ela teria chance.'''' Knopf não estava sozinho. The Diary of a Young Girl, versão em inglês do diário de Anne Frank, seria rejeitado por outros 15 editores antes de ser publicado pela Doubleday, em 1952. Mais de 30 milhões de exemplares já foram vendidas, o que transforma o livro num dos mais bem-sucedidos da História. O parecer sobre Anne Frank é parte do extenso arquivo Knopf guardado no Centro de Pesquisa de Humanidades Harry Ransom, na Universidade do Texas. Trata-se de um entre milhares de documentos no fichário de obras rejeitadas. Nada constrange mais um editor que o conhecimento público de que um clássico da literatura ou um megabest-seller escaparam entre seus dedos. Um deles rejeitou A Boa Terra, romance de Pearl Buck, argumentando que os americanos não estavam ''''interessados em nada sobre a China''''. Outro passou adiante A Revolução dos Bichos, de George Orwell, explicando que era ''''impossível vender histórias sobre animais nos EUA'''' (a culpa não é só dos editores: Tony Hillerman foi rejeitado por um agente que o aconselhou a ''''livrar-se de todas essas bobagens indígenas''''). Durante quase um século, a Knopf foi a grande referência no mercado de livros, publicando as obras de 17 ganhadores do Nobel e 47 volumes de ficção, não-ficção, biografia e História premiados com o Pulitzer. Recentemente, vasculhando o arquivo Knopf, estudiosos se surpreenderam com o número de pareceres equivocados, especialmente quando envolviam novos talentos. O arquivo de rejeitados, que vai dos anos 40 aos 70, inclui veredictos negativos para autores como Jorge Luis Borges (''''absolutamente intraduzível''''), Isaac Bashevis Singer (''''a Polônia e os judeus ricos de novo''''), Anais Nin (''''Não há vantagem comercial em adquiri-la e, a meu ver, não há vantagem artística''''), Sylvia Plath (''''Certamente não há talento genuíno suficiente para chamar nossa atenção'''') e Jack Kerouac (''''Sua prosa frenética e desordenada retrata com perfeição as viagens febris da geração beat. Mas é suficiente? Creio que não''''). Num período de dois anos iniciado em 1955, Knopf rejeitou manuscritos de Jean-Paul Sartre, Mordecai Richler e dos historiadores A.J.P. Taylor e Barbara Tuchman, para não mencionar Lolita, de Vladimir Nabokov (''''picante demais'''') e Giovanni, de James Baldwin (''''terrivelmente ruim''''). Como historiador, eu estava mais interessado nos arquivos sobre meus colegas de profissão. Devo confessar que os examinei esperando uma pilha de declarações pomposas e erros deliciosos. Essas avaliações podem ser subjetivas, refletindo as manias e tendências do parecerista, e os arquivos de livros de História rejeitados não são diferentes. Nos anos 40 e 50, Knopf enviou um bom número de manuscritos sobre história dos EUA a um avaliador ranzinza, cujas críticas severas poderiam arrancar a casca de uma árvore. Num parecer, ele destrói uma historiadora conhecida, afirmando que sua pesquisa é ''''escandalosamente inadequada'''' e seu texto, ''''totalmente insípido''''. Em outra avaliação, ele fala de um acadêmico promissor, alegando que sua prosa é ''''um pouco melhor que inglês de doutorado'''' e que ''''sua montanha de pesquisas produziu uma tese do tamanho de um rato''''. Ao fim do massacre, o parecerista acrescenta uma observação para se proteger: ''''Meu nome, é claro, não pode ser mencionado.'''' O professor X ''''e eu nos conhecemos e gosto muito dele como pessoa'''' (ambos os manuscritos seriam publicados por outras editoras e acolhidos com resenhas entusiasmadas). Na verdade, ataques como esses apareceram com menos freqüência do que eu esperava. Mesmo nos arquivos de rejeitados, onde reinava a negatividade, o grosso das avaliações parecia imparcial e convincente. Em outras palavras, um manuscrito rejeitado em geral parecia merecer seu destino. A decisão final era de Alfred A. Knopf, sua mulher, Blanche Knopf (que assumiu a presidência da companhia em 1957) e do editor-chefe, Harold Strauss. Após um manuscrito ser considerado inadequado, num processo que envolvia várias pessoas, seguia-se uma carta de rejeição, muitas vezes escrita pelo próprio editor. Às vezes o problema era financeiro. Alfred Knopf rejeitou The Age of the Democratic Revolution, clássico de R. R. Palmer, comunicando ao historiador de Princeton que seu livro nunca recuperaria os US$ 7.750 necessários para os ''''custos totais de produção'''' - um grande erro, conforme se viu depois. E não quis publicar um manuscrito de William Appleman Williams, pai da história diplomática da Nova Esquerda, escrevendo-lhe que, ''''em essência, seu livro seria um editorial em capa dura, e é difícil, quase impossível, convencer os leitores a pagar pelo privilégio de ler'''' obras assim. Examinando essas cartas, ficamos surpresos com o tom otimista dedicado a estudiosos mais jovens. Embora os Knopf e Strauss não vissem muita utilidade numa tese de doutorado revisada - era para isso, diziam, que Deus havia criado as editoras universitárias -, eles entendiam que era preciso manter as portas abertas para o novo talento e que o próximo manuscrito poderia ser a fórmula mágica. Alfred Knopf costumava concluir suas cartas de rejeição aos jovens historiadores com a previsão de que ''''um dia desses teremos algo seu que poderemos publicar com prazer''''. O que mais perturbava os Knopf e Strauss eram projetos ambiciosos de acadêmicos consagrados que não correspondiam às expectativas. Em 1952, ao receber um esperado manuscrito de John Hope Franklin, cujo livro From Slavery to Freedom vendera bem na Knopf, Strauss respondeu: ''''Lamento muito, mas sou obrigado a lhe dizer que, embora reconheçamos os méritos acadêmicos do manuscrito, estamos decepcionados com suas possibilidades comerciais. Sentimos que você perdeu a chance de escrever uma obra viva e dramática.'''' Em 1958, Alfred Knopf enviou esta nota a T. Harry Williams, professor de história sulista, que também publicara um livro bem-sucedido na editora poucos anos antes: ''''Querido Harry - Lamento profundamente, pois eu adoraria ter um manuscrito realmente bom de sua autoria, mas Americans at War não é'''' (Williams não achou graça. ''''Envio em anexo um cheque de US$ 1'''', respondeu ele, ''''suficiente para a devolução pelo correio de primeira classe. Eu gostaria de reaver o manuscrito imediatamente''''). Mas a fama de Knopf era tanta que os autores continuavam fazendo fila. Entre as décadas de 40 e 80, teria sido possível montar um ótimo departamento de História aproveitando estudiosos que publicaram livros importantes na Knopf depois de ter pelo menos um trabalho importante rejeitado pela editora - um grupo que conta com Williams, cujo Huey Long ganhou o Pulitzer de biografia em 1970; Tuchman, cujos maiores sucessos na Knopf incluíram Um Espelho Distante e A Marcha da Insensatez; Kenneth Stampp, cujo livro The Peculiar Institution, de 1956, revolucionou o estudo da escravidão americana; e Michael Kammen, cujo People of Paradox ganhou o Pulitzer de história em 1973. Agora que os editores fogem dos manuscritos e aprovam contratos com base num resumo rápido ou ainda menos, a autoria de cartas de rejeição tornou-se uma espécie de arte perdida. É difícil imaginar um editor hoje ditando o tipo de resposta que Alfred Knopf enviou a um proeminente historiador da Universidade de Colúmbia nos anos 50. ''''Desta vez, não faz sentido tentar ser gentil'''', dizia a carta. ''''Seu manuscrito não tem a mínima chance como candidato a nosso catálogo. Para começar, sempre achei que o assunto não valia nada. Continuo achando. Não amole, MacDuff.'''' Isso é que é carta de rejeição. Tradução de Alexandre Moschella * David Oshinsky é professor de História da Universidade do Texas em Austin, autor de Polio: An American Story, ganhou o Pulitzer de História de 2006

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