Pesquisa reconstitui o cotidiano dos libertos

A partir de registros, autor mostra como ex-escravos forjaram a sobrevivência

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Por Lilia Moritz Schwarcz
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Engana-se aquele que pensa que a memória gosta de lembrar. Assim como faz parte do ofício do historiador recordar, também esquecer ou simplesmente deixar no silêncio sempre foram práticas consagradas. É possível dizer que esse tipo de situação acabou por se afirmar no caso das pesquisas e das obras que trataram da escravidão no Brasil. Afinal, a representação desse sistema e o próprio processo de abolição foram apresentados a partir de algumas singularidades reveladoras: a crença de que a escravidão seria mais benigna no País e o alívio frente a uma libertação que teria se realizado sem lutas ou conflitos. Segundo essa versão mais oficial, diferente do que ocorrera em outros países em que o fim da escravidão desencadeara um processo de lutas internas, no Brasil a abolição teria gerado, sobretudo, calmaria. Visto sob esse ângulo, o País representaria um caso paradoxal na medida em que praticamente nenhum conflito teria ganhado visibilidade. Além do mais, após 1888, a inexistência de categorias explícitas de dominação racial incentivariam o investimento na imagem de um paraíso social e na recriação de uma história em que o conceito de miscigenação surgia associado a uma herança portuguesa particular e à sua suposta capacidade de assimilação. O resultado seria um modelo escravocrata mais brando, ao mesmo tempo que mais promíscuo. Diferente do caso de outras nações, onde o passado escravocrata sempre lembrou violência e arbítrio, no Brasil a história foi reconstruída, pois, de forma alentadora, mesmo encontrando pouco respaldo nos documentos pregressos. Pior ainda: em 14 de dezembro de 1890, Rui Barbosa - então ministro das finanças - ordenou que todos os registros sobre escravidão existentes em arquivos nacionais fossem queimados. Se a empreitada não teve sucesso absoluto, o certo é que se procurava apagar um determinado passado e o presente significava um novo começo a partir do zero. Desde então, uma narrativa bastante romântica que falava de senhores severos, mas paternais e escravos submissos e serviçais, encontrou terreno fértil. No entanto, e a despeito do ato de Rui Barbosa, pode-se dizer que não se destruiu a totalidade dessa memória feita de pistas, traços e alguns sinais. Diante de uma população muitas vezes impossibilitada de deixar registros escritos, restaram as anotações feitas pelos próprios senhores, os relatos da repressão, os registros cartoriais e as descrições do cotidiano. Dos jornais aos documentos policiais, da iconografia às fontes primárias, dos documentos às fontes orais têm-se investido em novos objetos e em suas múltiplas leituras. O resultado é uma historiografia vigorosa que vem refazendo antigas imagens sobre a escravidão no Brasil. E é nesse terreno que pode ser incluído o excelente livro de Walter Fraga Filho. Encruzilhadas da Liberdade (Editora da Unicamp, 368 págs., R$ 36) é obra que se lê como romance de suspense, tal a quantidade de casos que o autor coleciona, os quais no seu conjunto vão mostrando como, nas brechas que o sistema deixava, os escravos negociavam sua condição e lutavam para se contrapor a ela. O autor anota como havia uma verdadeira ''''hermenêutica da liberdade'''', com senhores e escravos manipulando o conceito de maneiras em tudo distintas. Abordando o contexto do ''''day-after'''', ou seja, os momentos anteriores, mas sobretudo imediatamente posteriores à abolição da escravatura na região agrícola do Recôncavo Baiano, Fraga vai tecendo sua teia e mostrando como libertos e ex-senhores tinham percepções e expectativas distintas acerca das relações que seriam forjadas após a libertação. Se para os ex-proprietários tratava-se de constituir novas redes de dependência - vinculando o escravo à terra e fazendo dele um novo arrendatário -, para os ex-cativos foram se definindo projetos, aspirações e esperanças que iam muito além do final da escravidão. Para os ex-escravos, a liberdade significava ter acesso às suas próprias roças; o direito de escolher onde e como trabalhar; o arbítrio de circular pelas cidades; a possibilidade de não ser importunado pela polícia e a autonomia de cultuar seus deuses africanos ou de venerar à sua maneira os santos católicos. Significava, acima de tudo, o direito à cidadania. Assim, longe da concepção que viu na abolição uma dádiva, surge através de novas fontes uma série de personagens que passam a ser entendidos como agentes de suas próprias transformações históricas. Ao contrário do conceito de ''''coisificação'''' - presente nos primeiros estudos que trataram os escravos como elementos passivos e transformados em ''''coisas'''' por conta de sua situação -, a investigação destaca ''''atitudes nativas'''': os valores, mediações e uma série de dimensões sociais, culturais e religiosas implicadas nesse mesmo processo. Por isso mesmo, no lugar da antiga imagem da calmaria surge um processo repleto de conflitos, assim como se reconhecem agora famílias escravas ou de libertos, relações de parentesco, práticas religiosas, atividades culturais e costumes religiosos arraigados dessa população. Em pauta estão, portanto, as novas vivências escravas e dos libertos que permitem entendê-los como ''''sujeitos'''' do seu próprio processo. DESTINOS O fato é que entre os fins do século 19 e inícios do 20, escravos, libertos e senhores atuaram lado a lado, negociando alianças, conflitos, estratégias e identidades. E a partir de diferentes exemplos, Fraga recupera muitos destinos. A reconstituição e a costura de trajetórias individuais e familiares de ex-escravos e de seus descendentes permite reconhecer formas de sociabilidades inusitadas e situações das mais variadas. Impagável é a história de vovó Serafina, uma pacata cidadã que registrou suas filha e neta, mas que teria participado de uma fuga em 1882, quando um grupo de escravos do Engenho do Paranaguá revoltou-se, alegando que já havia cumprido a pena do cativeiro determinada em testamento. Incrível é a história do major Inocênco Texeiro Barbosa, que foi dormir com toda sua escravaria acomodada em sua senzala e acordou em fevereiro de 1885 sem seus 45 escravos. Inesperada foi a atitude do escravo Feliciano, que, com seus 50 anos feitos, apresentou-se à polícia em 1882, depois de ter esperado durante seis longos anos pela liberdade que não vinha. Esses fragmentos de histórias, esses retalhos de experiências, revelam novas lógicas sociais e simbólicas dessas comunidades que se formaram durante a escravidão e que elaboraram estratégias de sobrevivência e, mais do que isso, criaram suas próprias formas de convivência. Não se trata, assim, de pensar na simples ''''transição'''' do trabalho escravo ao livre e nem tampouco em dicotomias como ''''ruptura ou continuidade'''', ''''dependência ou autonomia''''. Na luta pela roça própria, na briga contra a invasão do gado do senhor, nos casos de furtos, na migração dos libertos para outras propriedades ou até mesmo na permanência no antigo engenho delineiam-se estratégias de invenção do cotidiano de ex-escravos, que entenderam liberdade e abolição a partir de seu próprio universo de referências e trataram de ampliar seus ganhos políticos e sociais. Temos, pois, reações divergentes diante de um mesmo cenário. De um lado, vários senhores procuraram se antecipar ao ato imperial e diminuir o impacto político da lei que aboliria a escravidão em 13 de maio de 1888, propondo saídas que previam a permanência dos cativos nas fazendas: a reprodução de antigas relações de dependência e ''''dívidas de gratidão''''. De outro lado, os escravos, mesmo permanecendo nos engenhos, passaram a negociar sua liberdade e condição. Resta esperar que agora não se transforme a resposta escrava de plural em singular. Como o próprio autor evidencia, a população cativa possuía situações materiais bastante distintas. Alguns chegavam a possuir bens ou tinham direito sobre a terra; outros dominavam uma profissão especializada ou mantinham postos como o de feitor de serviço. Com esses direitos acumulados, alguns escravos com certeza barganhavam diferentemente a sua condição e, assim como não se pode falar de uma só reação branca, também não existiu apenas a resposta conflituosa por parte do escravo. O outro lado do espelho é também multifacetado e pode prever e levar a imaginar uma gama grande de possibilidades de atuação. Encruzilhadas da Liberdade é livro que convida a desconfiar de saídas unívocas e a apostar numa historiografia atenta a novas pistas. Quem sabe Dorival Caymmi, mesmo sem saber, tenha dado vazão à memória popular quando cantou: ''''Eu vou pra Maracangalha, eu vou''''. Foi no Engenho Maracangalha que uma série de escravos ''''arrancharam'''' para plantar roças, ou viveram a agradável sensação de experimentar a falta de ''''sujeição''''. O caso não foi isolado e em várias partes da província baiana e no Brasil como um todo os ex-escravos manifestaram o desejo de encontrar alternativas mais independentes da grande lavoura. Quem sabe não estivessem de ''''chapéu de palha'''', como diz a música. Cantaram, porém, a sua liberdade, fazendo de Maracangalha uma espécie de paraíso perdido em meio a uma terra da labuta forçada.

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