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Personagens de ontem e hoje, indiferentes ao tempo

Ele compôs uma bíblia da nossa origem, criando ensaios que são ficções, ficções que são argumentos e poesias que comovem

Por Rosane Pavam
Atualização:

É demasiadamente bonito o que ele escreve, mas, se assim não fosse, de que nos serviria? Jorge Luis Borges foi este autor para quem o estilo, ou as iluminações, renovaram-se no espelho dos outros autores, predecessores ou seguidores. Este é um escritor indiferente ao tempo e à sua passagem, como se ele os criasse. ''''O tempo está vivendo-me'''', disse em Lua Defronte, um livro de juventude. O que importa, então, não é que o relógio ande, é que a beleza reste. Borges alcança o que é belo, algo dificilmente obtido por quaisquer dos artistas da palavra. Houve os que escrevessem correta e profundamente, secos, bem-humorados, derramados ou líricos. Mas Borges, como poucos, criou uma escrita que uniu todas essas maneiras com o objetivo de tornar compreensível a civilização contemporânea em eterno colapso. Um escritor moderno deveria remexer o caldo grosso, e o argentino levou o intuito a sério. Ele profere os fatos e as filosofias ocidentais como verdades irônicas, sob suspeição. Evocando a lógica, Borges conclui que todos os outros são modernos simplesmente por viverem a modernidade, o hoje. Não importa se fracassam ou se vençam nesta tentativa de expressão, uma vez que tudo constitui ilusão e ruína. A diferença está no ânimo de quem observa as coisas. Na juventude, ele diz, ''''buscava os entardeceres, os arrabaldes e a desventura'''', e, a contar seus 70 anos, ''''as manhãs, o centro e a serenidade''''. Nos seus textos que apresentam estas quatro edições, ele tem palavras divertidas sobre as pretensões juvenis, apesar de admitir ser, em essência, a mesma pessoa que produziu petulâncias passadas. ''''Para mim, Fervor de Buenos Aires prefigura tudo o que eu viria a fazer'''', ele afirma, não sem promover uma revisão que limpou ''''sentimentalismos e vaguezas'''' de seus poemas jovens. Na coletânea Primeira Poesia, conta que se recordou de não precisar forçar a barra ao se dizer argentino, procurando palavras estranhas para designar sua autenticidade, ele que se alfabetizou em inglês. Argentino sempre foi, andou livre pelas ruas de Buenos Aires, apesar de todas as viagens. A beleza do estilo, provou-nos Borges, tem uma face invisível. O que é bonito não se captura facilmente como um fazer, ou, do contrário, muitos depois de Borges teriam sido capazes de segui-lo literariamente. Escrever bonito - porque precisamente, sem palavras a menos ou a mais, evocando música, sabedoria e mistério - não parece ser uma escolha que façamos ao acordar. Daí comemorarmos que seus livros se vejam reeditados de tempos em tempos. O oráculo não deve abandonar seu posto. Basta olhar os livros agora relançados para saber que não há novidade em Borges, nem pode haver. Este escritor é um tanto do que já foi. Ele inventou um formato conciso no qual perambularam os personagens de ontem e de agora. Não escreveu romances. Compôs, isto sim, uma bíblia da nossa origem e permanência, com sua escritura inalcançável, por simples, em ensaios que são ficções, ficções que são argumentos, poesias que comovem. É como se houvesse apenas uma pedra em todo o mundo onde gravar a mensagem final do último homem - e é como se Borges, distraído, tivesse se sentado sobre ela, depois de refletir. Quem um dia leu o Alice de Lewis Carroll leu todos os livros infantis que vieram depois dele, as comédias, as alucinações e as melhores sitcoms da América, e também os manuais dos sonhos antigos, renovados sob sua luz. Acontece algo parecido com Borges, manejador de um tempo sem linha. Nós o lemos na juventude (que nos parecerá tediosamente eterna) como uma força de contestação, mas isto mudará conforme envelhecermos e voltarmos a ele, maduros na aparência. Borges nos despertará a calma diante do que é terrivelmente eterno e maior do que nós. Pode-se devorar todos os livros vindos depois dele, já que o leitor, esta figura que o escritor reverencia, precisa de repetição, tal como uma criança que exerce seu aprendizado. O leitor pode ser prolixo, mas não Borges, enquanto escreve. Este autor será dos poucos a parecer novo e antigo a um só tempo. Ele é literatura infantil para adultos, no sentido de que especula um mundo de constantes descobertas. Quem lê hoje uma novidade lançada ao mercado editorial estará conhecendo um pedaço de Borges, se tiver sorte. Por isto parece ser necessário percorrê-lo desde o início como uma fonte original, fartar-se dela e, então, voltar a seu labirinto. O escritor contém um mundo, como o tal livro que o poeta Mallarmé imaginava ser o objetivo real da vida humana. Intenso, este devoto de Buenos Aires lembra aquele único dia de primavera em que temos dinheiro no banco. Caminhar por ruas de rosas sem se preocupar com o que comer à noite, isto é algo que a vida nos dá de vez em quando, como um presente.

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