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Personagens a caminho da perfeição

Gestos e entonações exigem um tempo mais longo de maturação no sedutor Memória da Cana, dirigido por Newton Moreno

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Por Redação
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No plano científico, é pouco provável que a comparação se sustente, mas, no território da dramaturgia, o Sul e o Norte representam a família patriarcal brasileira de modo bem diverso. Pobres, incultos e sujeitos às forças cegas da natureza e aos caprichos da política econômica, os chefes dos clãs rurais mineiros e paulistas adquirem estatura dramática de maior relevo, sobretudo na obra de Jorge Andrade, porque conservam, em meio à adversidade, um resquício teimoso da dignidade camponesa. Na contrapartida, enraizada na economia açucareira, há uma numerosa galeria de protagonistas altivos, passionais, em geral destruídos no fim da narrativa, mas raramente derrotados. Chefes de clã nortistas e nordestinos são, na perspectiva de renomados autores como Joaquim Cardozo, Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna, parentes próximos dos heróis trágicos. Tem bons motivos, portanto, o adaptador e diretor Newton Moreno para aproximar Álbum de Família das sagas nortistas de honra, traição e vingança. Na peça de Nelson Rodrigues ecoa, de modo plausível, a memória de uma cultura familiar que precede, na biografia do autor, a vivência do meio urbano carioca. Não foram necessárias grandes alterações para que a peça Memória da Cana se acomodasse aos hábitos e aparências da fazenda canavieira. Encenada com ênfase na ambientação e com sotaque nordestino, a história da família de Jonas e Senhorinha, percebida por um dos filhos como a família "única e primeira", conserva a sugestão atemporal porque a vida no campo, pelo menos para o imaginário urbano, parece arcaica e, sendo assim, coisa do passado. Intervenções pontuais nos figurinos dos intérpretes são suficientes para sugerir permanência e continuidade através da história. A construção do espaço e, de um modo geral, o tratamento das imagens do espetáculo afastam-se, contudo, da abstração e da generalidade que, mais por hábito do que por norma, distingue a moderna concepção do "trágico". Desde o momento da acolhida feita ao público, o espetáculo associa à formalização trágica a beleza e a ideia de sensualidade que se amalgamou - e não apenas pela influência de Gilberto Freyre - à casa senhorial dos plantadores de cana e donos de engenho. Em um saguão ajeitado como refeitório ao ar livre, onde se agrupam em tons esmaecidos móveis e inofensivos objetos da vida doméstica, a primeira irrupção da sexualidade chega por intermédio da gravação das vozes infantis das colegiais. Sedutora, quase uma promessa feita ao público enquanto o convida a entrar no reduto da família de Jonas, a fala das meninas é também a mais límpida expansão amorosa que a peça permite, porque é a única que dissocia sexualidade e parentesco. Depois, deixa o espaço aberto para penetrar na clausura onde está encerrada a família. Da abertura à oclusão, o trajeto é permeado por seduções visuais e sonoras. A longa mesa, envolta pela bruma criada de modo engenhoso por Marcelo Andrade e Newton Moreno, tem a dupla função de desenhar a amplitude da casa senhorial e sugerir o altar do sacrifício profano onde o pai será oficiante e vítima. Fora da bruma, rondando a casa, mas ainda visível, está Nonô, o filho louco, primeira vítima da devoração dos pais. Quase todas as soluções plásticas do espetáculo, embora impressionem antes de tudo pelo apelo sensorial, estão ancoradas em uma operação analítica sobre os possíveis significados do texto. Com uma percepção incomum, bastante adequada ao momento presente, a direção de Newton Moreno reconhece e ilumina o intuito transgressor de uma narrativa que associa ao martírio de Cristo o sofrimento dos que vivem sob a tirania das pulsões. O que ainda não parece acabado neste espetáculo é o trabalho de construção das personagens. Estão prontas como desenho, compreende-se a associação entre o fundo mítico e a família patriarcal tal como é descrita pela antropologia social. Faz falta a tonalidade grave e cadenciada da dor psíquica (e espiritual) indicada por meio da postura corporal dos intérpretes e pelo ritmo cerimonioso das ações físicas. Por algum motivo, as vozes, exaltadas e aparentemente transtornadas pelos sentimentos, prejudicam a compreensão das falas por parte do público. Em uma disposição espacial que procura envolver atores e público no mesmo ambiente familiar, a tensão vocal permanente e a altitude das vozes atraem a atenção para a vida passional, enquanto obscurecem as diferentes estratégias das personagens da trama. Fica claro, por exemplo, o desmoronamento da autoridade de Jonas (interpretado por Marcelo Andrade) encolhendo-se e se despindo dos signos do patriarcado rural. Gestos e entonações sedutores ou estratégias de conquista exigiriam um tempo mais longo para se destacar da sucessão dos episódios. Depois da violência do chicote, sucedem modulações mais suaves porque são desse modo, insidiosas e igualmente letais, as armas do poder matriarcal.

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